Reivindicações dos mapuche dividem direita e esquerda em eleições no Chile e na Argentina
Conservadores chamam indígenas de terroristas e pedem política linha-dura; progressistas se solidarizam com a causa
Às vésperas de eleições, Argentina e Chile enfrentam um aumento dos conflitos por terra ao sul de seus territórios. No entanto, desta vez os embates entre o Estado e os povos indígenas mapuche não se limitam apenas à região da Patagônia, onde ocorrem desde o século 19.
Hoje, integram parte importante das narrativas das campanhas de candidatos. A Argentina elege metade da Câmara de Deputados e um terço do Senado no próximo dia 14, enquanto o Chile, uma semana depois, decide quem será o sucessor do presidente Sebastián Piñera e renova todo o Congresso.
Em ambos os lados da fronteira, o protagonista dessas fricções é a população mapuche, que habita a região conhecida como Araucania desde o século 5, portanto muito antes da chegada dos conquistadores espanhóis, no século 16. Embora existam diversas tribos e ramificações, os mapuche compartilham uma forte identidade comum no vestuário, nos costumes e em seu idioma, o mapudungún.
No Chile, a população mapuche é de 1,8 milhão de pessoas. Na Argentina, cerca de 500 mil. A fronteira entre os dois países não é reconhecida pelos indígenas, que a veem como algo artificial e imposto pelo que classificam de “invasores”, que estariam ocupando suas terras de modo indevido.
De ambos os lados, a grande maioria dos mapuche vive de modo pacífico e dedica-se à agricultura e à pecuária de subsistência. Há, porém, agrupações que atuam com violência, realizando invasões e ataques incendiários, em geral pelo mesmo motivo: reivindicar a soberania do território da Araucania.
No último dia 20, um ataque de um grupo mapuche provocou o incêndio e a destruição do Club Andino Piltriquitrón, na província de Río Negro, numa região disputada conhecida como El Bolsón, a 120 km do centro da cidade turística de Bariloche. Do lado chileno, o governo de Piñera enviou militares à região sul devido a uma série de invasões e ataques realizados por grupos mapuche a fazendas e comércios.
Ambos os conflitos existem desde o século 19, quando os dois países realizaram campanhas militares para desapropriar terras indígenas —as ações ficaram conhecidas como Ocupação da Araucania, do lado chileno, e Campanha do Deserto, do argentino. Naquelas batalhas, milhares de indígenas foram mortos —as estimativas variam, mas na Argentina é consenso entre historiadores que a jornada teve ímpeto genocida. Os demais indígenas foram deslocados a locais distantes dos rios aos quais tinham acesso.
No Chile, os conflitos se acirraram no primeiro mandato de Piñera, em 2010, quando o presidente, de direita, assumiu uma posição de confronto diante dos ataques, utilizando a dura legislação antiterrorista contra os responsáveis pelos delitos. Em 2019, quando protestos contrários ao governo eclodiram em Santiago, a bandeira mapuche esteve presente, sendo levada por jovens estudantes solidários à causa.
Na Argentina, a situação ficou mais tensa a partir de 2002, quando a grife Benetton, que possui uma propriedade para a criação de ovelhas para a fabricação de roupas na região, ganhou na Justiça o direito de desalojar um casal mapuche que vivia de modo ilegal em suas terras.
O episódio teve enorme repercussão na mídia em defesa dos indígenas, assim como marchas e campanhas lideradas por figuras célebres, como o Nobel da Paz Adolfo Pérez Esquivel.
Em 2017, o então presidente Mauricio Macri enviou tropas para desalojar um acampamento mapuche numa propriedade privada em Villa Mascardi, numa operação que vitimou o jovem mapuche Rafael Nawel, de 19 anos, mortou com um tiro da polícia. Desde então, a causa mapuche se tornou uma bandeira dos jovens progressistas associados a partidos de esquerda e ao peronismo.
José Antonio Kast, candidato de ultradireita que lidera as pesquisas para o primeiro turno das eleições presidenciais no Chile, chama os mapuche que protestam de terroristas e defende o uso das Forças Armadas nas desocupações de terra.
Kast também se posiciona contra a política de cotas eleitorais, que permitiu, por exemplo, que a Assembleia Constitucional chilena seja composta por 17 representantes dos povos originários.
Do outro lado, a presidente da assembleia, Elisa Loncón, líder mapuche e professora universitária, quer que o Chile passe a ser reconhecido como um país plurinacional e faz campanha pela liberação dos mapuche ligados a ataques, que considera presos políticos.
Já Gabriel Boric, candidato da esquerda, em segundo lugar nas sondagens, afirma que “há muito o que aprender com os mapuche”. Na campanha, tem viajado ao sul e afirmado que, se eleito, reconhecerá a soberania mapuche e implementará políticas de inclusão. “Chega de militarização, com os habitantes do Wallmapu [como é conhecida a região pelos indígenas desse território] queremos diálogo e coexistência”.
“Estamos muito esperançosos com a nova Constituição e com a possibilidade de incluir as políticas do ‘bem viver’ mapuche às leis do país. É preciso repensar o modelo econômico extrativista do Chile, a relação com a terra. Isso não será bom apenas para os indígenas, mas para todo o país”, afirma à Folha Veronica Figueroa Huencho, professora da Universidade do Chile, de origem mapuche.
O “bem viver”, que propõe uma visão mais comunitária da política, da economia e da Justiça, é parte importante das culturas dos povos originários da América do Sul e foi integrado às mais recentes constituições do Equador, durante o governo de Rafael Correa, e da Bolívia, na gestão de Evo Morales.
Na Argentina, ataques de grupos mapuche às vésperas das eleições têm causado dor de cabeça ao presidente Alberto Fernández. A oposição, que derrotou o peronismo nas primárias em setembro, utiliza o discurso de que essas grupos são terroristas e que o governo deve enviar as Forças Armadas para a província de Río Negro, na esteira do mesmo roteiro utilizado no Chile por Kast.
Para não desagradar seu eleitorado, Fernández não cede à pressão e afirma que os conflitos de terra com os indígenas devem ser resolvidos pelos governadores. Em dois anos de governo, no entanto, o presidente argentino nada fez para colocar em prática uma lei aprovada em 2006 que determina a necessidade de realizar um mapeamento da população indígena argentina e, eventualmente, estabelecer uma política de demarcação de terras. Na Argentina, desde 1994 a Constituição reconhece os direitos dos povos originários, mas essa decisão até hoje não provocou consequências práticas.
O líder dos chamados libertários, Javier Milei, é contra uma política específica aos indígenas. “Não deve haver cotas nem benefícios especiais. Todos têm de respeitar a liberdade da propriedade de terra”, disse o candidato à Folha. Já Nicolás del Caño, da Frente de Izquierda, afirma que os mapuche “estão sendo pisoteados historicamente”. “O Estado precisa devolver terras a seus proprietários originais.”