JUSTIÇA

Senado confirma Ketanji Jackson como 1ª juíza negra na Suprema Corte dos EUA

Magistrada foi aprovada mesmo após sofrer críticas duras da oposição republicana

Senado confirma Ketanji Jackson como 1ª juíza negra na Suprema Corte dos EUA (Foto: Reprodução-Twitter)

Pela primeira vez desde a formação dos EUA, uma mulher negra poderá dar a palavra final nas questões jurídicas do país. Nesta quinta (7), Ketanji Brown Jackson se tornou juíza da Suprema Corte americana. A aprovação de Jackson já tinha os apoios necessários no Senado antes mesmo do final da votação, realizada a partir das 14h (15h em Brasília). Indicada por Joe Biden em fevereiro, ela, alvo de muitas críticas dos republicanos, tomará posse no segundo semestre, quando começa o novo ano legislativo.

Apesar das críticas, a magistrada obteve três votos da oposição. Ao final, o placar de 53 votos a favor e 47 contrários contou com o apoio dos senadores republicanos Lisa Murkowski, do Alaska, Mitt Romney, de Utah, e Susan Collins, do Maine —todos eles são críticos do ex-presidente Donald Trump.

Jackson acompanhou a votação na Casa Branca, ao lado de Biden, e recebeu um abraço do presidente ao final da votação. Os dois farão pronunciamentos sobre a aprovação nesta sexta (8).

A chegada de uma juíza negra à Suprema Corte tem forte simbolismo. O tribunal teve papel fundamental em sedimentar, e depois retirar, medidas racistas que se tornaram políticas de Estado.

Em 1896, juízes da corte decidiram que segregar negros e brancos em espaços públicos não contrariava a Constituição. A decisão fez com que estados do Sul do país tivessem restaurantes, escolas e até assentos em ônibus dos quais negros não poderiam chegar perto. A partir dos anos 1950, a Suprema Corte mudou o entendimento de que “segregados, porém iguais” era uma ideia funcional e proibiu a separação, o que fez com que os negros deixassem de ser barrados e tivessem mais condições de melhorar de vida.

Agora, Jackson integrará a Suprema Corte em um novo momento de reavaliação de decisões. O principal tema em debate é o aborto, liberado pela própria corte em 1973. Alguns estados, porém, criaram leis locais que restringem o procedimento, e o tribunal analisa se a medida de um deles, o Mississipi, é válida.

O veredito sobre esse caso, ainda sem data confirmada para ser julgado, pode levar à reversão da liberação de 1973, o que concretizaria o sonho de muitos eleitores conservadores e republicanos. Atualmente, a corte tem seis juízes de inclinação conservadora, e três, progressistas. Jackson não mudará essa conta, porque a magistrada ficará com a vaga do juiz liberal Stephen Breyer, 83, que se aposentou.

Assim, apesar de histórica, sua nomeação pode ter efeito reduzido sobre os rumos da corte no curto prazo. E Jackson também disse que não participará da votação de um caso sobre ações afirmativas em universidades, porque a ação envolve Harvard, instituição com a qual ela mantém relações.

Nascida em Washington, em 1970, Jackson é filha de pais que estudaram em escolas segregadas. Depois, eles cursaram universidades voltadas para negros e começaram a carreira como professores na rede pública de Miami. Quando ela era pequena, seu pai, Johnny Brown, decidiu mudar de profissão: estudou direito, tornou-se advogado e inspirou a filha a seguir o mesmo caminho.

“Vê-lo sentado na mesa da cozinha, lendo livros jurídicos, é uma das minhas primeiras memórias. Eu o vi estudando, e ele se tornou meu primeiro exemplo profissional”, disse ela, em discurso em fevereiro.

Estudante com destaque em torneios de debate e oratória, cursou direito em Harvard, universidade na qual foi subeditora da publicação Harvard Law Review. Após se formar, foi assistente de alguns magistrados de renome, incluindo Breyer, ocupante da cadeira que agora será dela.

Nos anos 2000, alternou períodos como advogada e defensora pública, em que atendia pessoas sem dinheiro. Assim, ela é também a primeira ex-defensora pública a chegar à Suprema Corte.

Em 2009, Jackson foi indicada pelo presidente Barack Obama para a vice-presidência da US Sentencing Comission, órgão federal que busca padronizar sentenças. Durante seu mandato, o departamento recomendou a redução nas penas para crimes ligados ao porte de drogas.

Quatro anos depois, Obama a nomeou para a Corte do Distrito de Columbia. No cargo, analisou processos envolvendo atos da Presidência, barrou uma tentativa do então presidente Donald Trump de ampliar a deportação de imigrantes sem ouvi-los em audiências e impediu três ordens executivas do republicano para limitar os direitos de trabalhadores federais, como a filiação a sindicatos.

Em junho de 2021, Jackson foi nomeada por Biden para a Corte de Apelações do Distrito de Columbia. A indicação foi aprovada no Senado na época por 53 a 44, com três votos de republicanos.

Na análise para o cargo atual, os republicanos foram mais duros. Durante a sabatina no Senado, ela passou mais de 23 horas respondendo questões dos senadores. O processo foi marcado por perguntas agressivas da oposição e senadores interrompendo respostas da magistrada para tentar reafirmar seus pontos. Do outro lado, democratas fizeram muitos elogios, que levaram a magistrada às lágrimas.

Alguns republicanos tentaram caracterizá-la como uma ativista de esquerda condescendente com o crime. Jackson é juíza federal há mais de dez anos e já deu penas menores do que o recomendado para acusados de envolvimento com pornografia infantil. O senador Ted Cruz chegou a levar um cartaz que exibiu penas dadas por ela ao lado das indicações federais —que são opcionais. Jackson respondeu que sentenças devem levar em conta vários fatores. “Os juízes não estão num jogo de números. Em cada caso, cumpri meu dever de responsabilizar os réus à luz das evidências e das informações apresentadas a mim.”

Ao longo do processo de nomeação, ela buscou se apresentar como uma pessoa muito grata ao apoio que teve da família e ligada à religião, mas capaz de separar os valores pessoais da atuação profissional. “Minha fé é muito importante, mas não há teste religioso na Constituição”, respondeu, durante a sabatina.

Disse, ainda, ter claro que o papel do juiz é aplicar as leis, não tentar modificá-las nem criar políticas públicas. “Tenho dedicado minha carreira a garantir que as palavras gravadas na frente do edifício da Suprema Corte, ‘Justiça igualitária sob a lei’, sejam uma realidade, não apenas um ideal.”

A escolha de Jackson foi vista como um aceno de Biden ao eleitorado negro, que deu boa votação aos democratas na eleição presidencial de 2020. O presidente tem sido cobrado por lideranças para fazer mais ações e menos discursos, e a perda desta fatia pode custar ao partido do presidente o controle do Congresso, que está em jogo nas eleições legislativas de novembro. De acordo com o censo de 2020, os negros representam 12,4% da população dos EUA — ou seja, 41 milhões de pessoas.

A nova juíza será apenas a terceira pessoa negra a ser nomeada para a Suprema Corte. O primeiro foi Thurgood Marshall, indicado em 1967. Advogado, foi um dos principais responsáveis por derrubar as leis que protegiam a segregação. O segundo, até hoje no tribunal, é Clarence Thomas, indicado em 1991.

Entre as mulheres, a primeira foi Sandra O’Connor, em 1981. Com Jackson, a corte quase terá paridade de gênero, com cinco homens e quatro mulheres, pela primeira vez em 233 anos de história.