Tirou do ar

‘Ucrânia volta para a Rússia’, publica agência de notícias ligada ao Kremlin

Há indícios de que o texto tenha sido publicado por engano, já que não está mais disponível no site da agência

A Ucrânia voltou para a Rússia, e “um novo mundo está nascendo diante de nossos olhos”. Isso é o que dizia um artigo publicado no último sábado (26) pela agência de notícias RIA, ligada ao Kremlin, como uma espécie de celebração de suposta vitória de Moscou nos confrontos que se arrastam desde o início da guerra contra o país vizinho.

Há indícios de que o texto tenha sido publicado por engano, já que não está mais disponível no site da agência. O material porém, não passou batido pela organização Internet Archive, que conseguiu capturar a tela da publicação e a disponibilizou na WayBack Machine (plataforma que permite que usuários visitem versões antigas de páginas da internet).

Assinado pelo jornalista Petr Akopov, o texto tenta convencer o leitor de que a existência da Ucrânia é indissociável da história russa, narrativa frequentemente utilizada pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin. “A Rússia está restaurando sua unidade –a tragédia de 1991 [quando a União Soviética chegou ao fim], essa terrível catástrofe em nossa história, seu deslocamento não natural, foi superada”, escreveu.

Ainda na linha de ucranianos e russos serem “um só povo”, como também já escreveu o chefe do Kremlin, o jornalista lamenta que essa “nova era” tenha vindo a grandes custos. “Irmãos, separados por pertencerem aos Exércitos russo e ucraniano, continuam atirando uns nos outros”. O autor também crava que com a imaginada vitória de Moscou, não haverá mais o sentimento anti-Rússia no país vizinho.

“A Rússia está restaurando sua plenitude histórica, reunindo o mundo russo, o povo russo -em sua totalidade de grandes russos, belarussos e pequenos russos”, celebrou, citando os nomes de como eram chamadas aquelas pessoas que haviam nascido na Rússia, na Belarus e na Ucrânia, respectivamente, quando os três países faziam parte do império russo.

A narrativa histórica utilizada pelo autor já é conhecida, mas a publicação precipitada do artigo pode ter adiantado alguns planos de Putin para com os ucranianos, além de novos passos nas relações geopolíticas do Kremlin. Ainda que tenha comemorado o fato de a Ucrânia ter voltado para a Rússia, o jornalista frisa que “isso não significa que seu Estado será liquidado, mas será reorganizado, restabelecido e devolvido ao seu estado natural de parte do mundo russo”.

Os detalhes desse processo são deixados em aberto pelo autor, mas uma coisa é certa, segundo ele: a suposta vitória russa no confronto mostraria ao restante do mundo que “a era da dominação global ocidental pode ser considerada completa e definitivamente encerrada”. Nesse caso, a nova ordem mundial seria “construída por todas as civilizações e centro de poder, juntamente com o Ocidente (unido ou não). Mas não nos seus termos e nem de acordo com as suas regras”.

A deterioração das relações entre a Rússia e as potências ocidentais já havia sido destacada na última sexta (25) pela porta-voz da diplomacia russa, Maria Zajarova. Segundo ela, “o fato é que estamos perto do momento em que começa o ponto de não retorno”.

A publicação da RIA tem ainda um outro significado, esse de caráter mais simbólico: a propaganda estatal e a escalada de falsas notícias divulgadas por canais de informação ligados ao Kremlin.

Desde o final do ano passado, pesquisadores vêm notando um aumento nas publicações em redes sociais acusando a Ucrânia de tramar um genocídio contra ucranianos de etnia russa -essa, inclusive, é a principal narrativa de Putin para justificar sua ação militar no país vizinho.

Na mesma esteira, o governo russo proibiu no sábado (mesmo dia em que o artigo foi publicado) que a mídia local trate a guerra pelo seu nome. O novo termo aprovado é “operação militar especial no Donbass”. Essa foi a expressão usada por Putin para a invasão, em discurso gravado que foi televisionado na quinta.

Há também uma possível explicação técnica para o ocorrido com a agência de notícias russa. É prática recorrente no jornalismo preparar textos para publicação tão logo um evento com chances consideráveis de acontecer se concretize. Nesse caso, os jornalistas russos podem ter se precipitado ou enfrentado algum problema técnico.

A última hipótese serviu como justificativa quando, no início do mês, a americana Bloomberg News anunciou, acidentalmente, que a Rússia havia invadido a Ucrânia -como se sabe, a ação militar russa no país vizinho só foi iniciada na madrugada da última quinta. Na ocasião, o veículo divulgou uma nota na qual reconheceu o engano e anunciou uma investigação para entender a causa do problema.

O erro dos jornalistas americanos foi citado, à época, pelo governo russo. Na ocasião, o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, descartou o ocorrido como uma provocação -“Não há necessidade de exagerar o que aconteceu”–, mas viu o erro como uma mostra de quão perigosa é a tensão em torno da Ucrânia, algo que segundo ele, é provocado pelo Ocidente.