16 anos após ser vítima de tortura, ‘menina Lucélia’ quer disputar eleição em Goiânia
Além de ter língua cortada, a pré-candidata a vereadora, foi obrigada contar quantas pauladas receberia na cabeça, comer baratas e fezes de cachorro
Dezesseis anos após ser resgatada em situação de cativeiro, Lucélia Rodrigues, que ficou conhecida como “menina Lucélia”, em um episódio que chocou o Brasil, em 2008, decidiu que é o momento para entrar na vida pública e almeja uma das 37 cadeiras da Câmara dos Vereadores, de Goiânia, nas eleições deste ano. Aos 28 anos, casada e mãe de três filhos, fala em um mandato com foco na defesa da mulher, criança e adolescente.
Por aproximadamente dois anos, Lucélia Rodrigues viveu situações dignas de roteiro para filme de terror. Inúmeras vezes foi vítima de tortura, em sessões que começavam à meia-noite e terminavam apenas as seis horas da manhã. “Era amordaçada, acorrentada, enforcada, alvo de afogamento em tanque de água”, relembra em entrevista ao Mais Goiás.
Foi a empresária Sílvia Calabresi Lima, condenada a 15 anos de prisão, a responsável pelas torturas, um ano e meio após adotar a pequena Lucélia que hoje é missionária. “No início, eu não era torturada nem mal tratada. Na realidade, no começo, a relação era muito boa. Eu era muito bem cuidada”, relembra.
Com a separação dos pais biológicos, Lucélia passou a morar com a mãe. Mas as condições financeiras não eram nada boas. “Moramos num barracão de dois cômodos, pequeno e apertado, aqui em Goiânia”, destaca. “Nesse tempo difícil, conhecemos a empresária que ofereceu ajuda.”
Foi uma tia de Lucélia que fez a ponte para o encontro. “Ela trabalhava como doméstica na casa da empresária”, relembra. De acordo com Rodrigues, foi a própria Silvia que convidou a pequena para, a princípio, passar uma semana com ela.
“Quando foi para devolver para minha mãe, a empresária pediu para que eu fosse morar com ela com promessas de uma vida e futuro melhor. Prometeu que iria me dar os estudos e cuidaria de mim como filha. Minha mãe deixou eu ir morar com ela num condomínio fechado”, relembra.
Gradativamente, as torturas vieram…
“Eu morava num condomínio de luxo e depois nós mudamos numa cobertura no Setor Marista. Nesse local, eu posso dizer que vivi os piores dias da minha vida”, relembra Lucélia. As torturas, porém, começaram de forma gradativa. “A primeira coisa que ela me tirou foi da escola. Ela, que prometeu a mim que me daria um futuro e uma educação melhor”, frisou. “Ela começou a se transformar numa pessoa que eu não conhecia”, relembra.
A lista das torturas que Lucélia Rodrigues foi vítima são inúmeras. “Afogamento no tanque, ela me afogava num tanque de água, me enforcava com cordas, prendia os meus dedos na porta. Tive todos os meus dedos esmagados na porta de um banheiro. Tanto que quando os policiais me encontraram, tinha sangue escorrendo na porta. Aquela mulher passava pimenta nos meus olhos, enfiava pimenta dentro do meu ouvido e nariz. Me enforcava, me dava pauladas na cabeça”, rememora.
Setenta pauladas na cabeça
Aos poucos, a lista de maldades aumentou em número e intensidade, como da vez que Lucélia foi obrigada a contar a quantidade de pauladas que recebia, na cabeça, nuca e também no estômago. Ou também o dia em que foi obrigada a comer baratas e fezes e urina de um cachorro que a empresária tinha.
“Eu me lembro que uma vez ela me deu setenta pauladas na cabeça, sessenta na nuca e sete no estômago. Eu me lembro da quantidade dessas pauladas, porque fui obrigada a contar todas. Tinha um cachorro e ela me obrigava a comer fezes e urina daquele cachorro. Me obrigava a comer baratas. Me deixava até três dias sem comer nada. Eu cheguei a ficar por muitas vezes, três dias sem comer”, pontua.
“Dormia num chão frio, sem lençol ou coberta para cobrir. Abusava de mim sexualmente. Muitas outras coisas. Me queimava com ferro de passar roupas. Apertava minha língua com alicate. Chegou a cortar um pedaço da minha língua com tesouro. Me asfixiava. Me privava de sono. Dormia duas horas da manhã e acordava as seis da manhã. Ela trabalhava o dia inteiro, na madrugada, por volta da meia noite começava a sessão de tortura e maus tratos”, relembrou.
Lucélia Rodrigues fala em perdão e diz que quer reencontrar com Calabresi
Mais de dezesseis anos após os incidentes, Lucélia diz que perdoa a empresária. “Hoje, lido tranquilamente com essa situação. Passei por um processo de cura”, destaca. A missionária destaca o papel importante que seus novos pais adotivos tiveram na sua criação: os pastores Marcos e Zenet Rodrigues. “Por meio deles, Deus começou a trabalhar na minha vida. Hoje sou quem eu sou porque fui bem cuidada. Eu perdoei, perdoei de verdade”, destaca.
Hoje, ela usa sua história para inspirar a superação em outras pessoas. “Eu lembro do que aconteceu, mas hoje uso minha história para que outras vidas possam ser curadas e alcançadas. Eu sou um milagre. A verdade é essa. Um exemplo de superação, mas isso só foi possível a partir do momento que eu passei a servir a Deus”, destaca.
Lucélia destaca que após os crimes terem sido revelados, teve um último encontro com Sílvia Calabresi, durante uma audiência. “No dia, eu tremi. Ainda não havia sido curada”, relembra. “Eu tive muito medo”. Mas dezesseis anos depois, a situação mudou. Curada, pretende se reencontrar com a empresária. “Tenho vontade de vê-la. Mas eu creio que Deus está se preparando para esse momento. No tempo certo, na hora certa, eu vou reencontrá-la.”, destaca.
E o que pretende falar à empresária? “Eu quero dizer para ela que o mesmo Deus que curou minha vida. O mesmo Deus que transformou o meu canto em alegria, quer transformar a história dela e ama ela. Dizer para ela que o mesmo Deus que me resgatou daquela situação ama a vida dela e quer curá-la. Quer mudar a história dela, assim como mudou a minha.”
Defesa da criança, adolescente e mulher
Agora, ela deseja uma das 37 cadeiras da Câmara dos Vereadores que estarão disponíveis durante a eleição de 2024. “O que mais me motivou a entrar na política é que eu sou uma pessoa que faço muito pelas pessoas. Ajudo e amo ajudar o próximo. Quero dar mais voz às mulheres, crianças e adolescentes. Quero ser um canal de benção na vida do povo da nossa cidade”, expressou Lucélia.
Entre suas principais bandeiras estão a defesa dos direitos das mulheres e o apoio a políticas voltadas para crianças e adolescentes. Lucélia reafirmou seu compromisso de utilizar sua história como uma ferramenta para inspirar e promover mudanças positivas na sociedade.
Lucélia escolheu o PSD como partido para sua pré-candidatura, destacando que se sentiu mais confortável com a sigla. Ela enfatizou que sua decisão foi pessoal e não envolveu influência de terceiros, apesar de contar com o apoio de amigos e irmãos de igreja. “Gosto muito do Vanderlan e da esposa Izaura, mas eles não tiveram papel na minha filiação”, destaca.
Ela também pretende evitar fugir de temas da política nacional e diz que quer focar nas pautas estruturais de GoiÂnia”Vou discutir as políticas públicas para a cidade, sem discutir a polarização nacional”, afirmou Lucélia, reiterando seu compromisso de focar nas necessidades locais e trabalhar em colaboração com outras autoridades para o bem-estar da comunidade.