"Mudança de cultura"

Após 5 anos de Lava Jato, órgãos ainda divergem sobre delação e leniência

Para advogado-geral da União, abre-se mão de perseguir o ilícito a qualquer custo para dar lugar a uma solução negociada

A AGU (Advocacia-Geral da União), o TCU (Tribunal de Contas da União) e o MPF (Ministério Público Federal) divergem em pontos críticos na forma em que acordos de leniência e delação premiada são firmados no Brasil. Foi o que mostrou debate promovido pelo jornal Folha de S.Paulo e pelo portal jurídico Migalhas realizado na quarta-feira (21) no auditório do jornal, na região central de São Paulo.

O evento ocorre seis anos depois da lei que regulamentou a colaboração premiada e cinco anos após o início da Lava Jato, operação que utilizou amplamente esse recurso. O “plea bargain”, tipo de solução negociada entre o Ministério Público, o acusado e o juiz, também foi debatido. A medida constava no pacote anticrime do ministro da Justiça, Sergio Moro, até ser rejeitado pelo grupo de trabalho que analisa a proposta na Câmara.

Segundo o advogado-geral da União, André Mendonça, o que ocorre no país é uma mudança na cultura jurídica. Abre-se mão de perseguir o ilícito a qualquer custo, um traço marcante dos processos brasileiros, para dar lugar a uma solução negociada, algo comum em outros países.

“Na nossa cultura brasileira (…), sempre dissemos: ‘Eu quero perseguir tudo, não vou abrir mão de nada, porque eu não concordo com o que é incorreto, com o que é ilegal’ (…). E assim nós passávamos dez anos na Justiça (…) discutindo esses ilícitos”, afirmou no debate.

Mendonça tem sido apontado como possível candidato do presidente Jair Bolsonaro a ocupar uma vaga no STF (Supremo Tribunal Federal).

O ministro do TCU Bruno Dantas fez críticas a alguns acordos que têm sido firmados, como o da Camargo Corrêa, que se comprometeu a pagar ao erário R$ 1,39 bilhão pelo envolvimento em esquemas de corrupção e desvio de recursos na Petrobras. As negociações foram feitas com a AGU e a CGU (Controladoria-Geral da União).

Para Dantas, “aqui no Brasil nós estamos discutindo muito sobre as multas e nada sobre o dano”, que teria que ser calculado pelo TCU. “Fazer um acordo de leniência que não estabeleça quanto a empresa deve devolver integralmente ao Estado equivale a fazer um acordo com um ladrão de carro, fixar para ele uma multa de R$ 5.000, mas deixar que ele fique com o carro que roubou”, afirmou.

“Estamos falando de acordos de leniência que podem servir como uma forma de lavar esse dinheiro”, disse o ministro. “Isso é um branqueamento de capitais oficializado, institucionalizado.”

Dantas estava no TCU quando o órgão reprovou as contas da então presidente Dilma Rousseff (PT), ação que deu base para o impeachment em 2016.
A procuradora do Ministério Público Federal Samantha Dobrowolsky afirmou no debate que sempre defendeu uma atuação do TCU na apuração dos danos. Ela é a primeira mulher a integrar o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica).

Segundo ela, os advogados de defesa não negociam acordos com o TCU. “Eu sempre defendi mais o TCU do que a CGU e a AGU nessa questão da apuração do dano”, declarou.

“O MPF talvez não tenha conseguido extrair das empresas – e aí temos grandes advogados que são duros negociadores – uma colaboração no TCU para apurar o dano. (…) Essa é a premissa deles no acordo. O fato de não se dar a quitação permite ao TCU exercer amplamente a sua competência”, argumentou a procuradora.

“Ninguém é ingênuo, a gente faz o que é possível. Não pode forçar e não pode pedir que colabore.” Em relação aos acordos de colaboração premiada, André Mendonça conta que faz uma metáfora religiosa com os empresários. O local da delação seria, segundo ele, um confessionário, em que vigora o princípio da boa-fé. Ali, é preciso “contar todos os pecados”.

“Você tem a garantia do sigilo e nada daqui vai vazar ou será usado contra você. Mas, se você tem dúvida se um ato é pecado ou não, cabe a você nos relatar. Nós vamos dizer se é pecado ou não.”Sobre esse tópico, o advogado Pierpaolo Bottini tem discordâncias. Ele é professor de direito penal da USP e tem clientes que foram réus na Lava Jato.

Para Bottini, a falta de regulamentação desses novos recursos traz imensa insegurança jurídica para as partes envolvidas. Crimes em relação ao consumidor de uma empresa que tem atuação no Amazonas, por exemplo, devem entrar em uma delação com o Ministério Público do Paraná sobre um cartel? Segundo o advogado, não há uma definição clara.

“A discussão sobre o escopo do acordo tem sido uma das coisas mais difíceis na prática. A empresa diz: ‘Eu vou colaborar com esta investigação, trazer esses elementos, esclarecer tudo e quero o meu benefício. Não quero proteção em nada mais, mas também não quero que, se descubram mais alguma coisa, isso afete o meu acordo aqui'”, exemplifica.

Segundo Bottini, “essa regulamentação ainda tem falhas e por isso, na prática, estamos trocando o pneu com o carro andando”.
O debate, que lotou o auditório do jornal, foi mediado pelos jornalistas Flávio Ferreira, do jornal Folha de S.Paulo, e Miguel Matos, do Migalhas.