Após mortes de adolescentes, José Eliton é convidado a explicar falhas no sistema socioeducativo em Goiás
Defensoria pública goiana apresentou caso do incêndio no CIP ao Conselho Nacional da Criança e do Adolescente que também virá à Goiás para inspecionar unidades. OEA também faz críticas
O incêndio que terminou com a morte de 10 adolescentes no Centro de Internação Provisória situado no 7° Batalhão da Polícia militar tem gerado reverberações nacionais e até internacionais. Criticada há anos por disponibilizar instalações e condições de permanência aquém da legislação, a situação do CIP é criticada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA) e também pelo Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda), o qual anunciou, na última semana, que irá convidar o governador José Eliton (PSDB) para prestar esclarecimentos sobre o Sistema Socioeducativo goiano e acerca das providências tomadas pelo governo para solucionar o caso supracitado. Uma data ainda não foi definida.
Após o encontro da Comissão de Direitos Humanos do Conanda, ocorrido entre na última quinta e sexta-feira (26 e 27) em Brasília, também ficou decidido que o órgão – ligado ao Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) – realizará uma missão em Goiás, acompanhado de integrantes do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e Comitê Nacional de Prevenção e Combate à tortura. Na ocasião, que também não tem data marcada, representantes irão analisar as condições do CIP e demais unidades de modo a enviar ofícios para o governo, Ministério Público, Sistema de Justiça, Segurança Pública e outros órgãos para exigir informações sobre a investigação – atualmente sigilosas – e ações de reparação às famílias, bem como melhoria da situação dos adolescentes nas unidades de internação goianas.
De acordo com a coordenadora da Comissão de direitos Humanos e Assuntos Parlamentares do Conanda, Jiimena Grignani, o convite à José Eliton será para que ele aborde as brechas na implementação do Sistema Nacional De Atendimento Socioeducativo (Sinase) em Goiás. “Para nós ficou claro, com o ocorrido [incêndio], que existem brechas que devem ser supridas, como falta de investimento, evidências de superlotação, fala na execução de projetos pedagógicos, entre outras”.
Segundo Grignani, o órgão precisa de respostas e requer a responsabilização dos implicados que extrapolam o Poder Executivo e alcançam o Judiciário e o Legislativo. “Entendemos que os internos tem que ter a liberdade cerceada, mas não os demais direitos como à educação, saúde, convivência familiar e principalmente à sua vida. Se um adolescente está sob a tutela do estado vem a óbito, precisamos ir atrás da responsabilização. A conversa com o governador é, inclusive, para entender a situação para se evitar novos casos. Nossa ação não pode ser meramente reparadora. Denúncias da Defensoria Pública apontam para possíveis finais trágicos em outras unidades, então, temos que interceder”.
Em nota, a Secretaria Cidadã afirma que adotou de maneira imediata as medidas necessárias para apurar os fatos ocorridos no Centro de Internação Provisória (CIP) e aguarda a conclusão do Inquérito Policial. “Os fatos são isolados e não refletem o compromisso do Estado em assegurar um atendimento humanizado aos adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação. Cabe informar que apenas em construção de novos e modernos Centros Socioeducativos o Governo de Goiás investe cerca de R$ 80 milhões de reais, fato que contribuirá para o aperfeiçoamento da prática socioeducativa”.
“Drama maior”
As condições do sistema socioeducativo goiano foram expostas no evento pelo defensor público Tiago Gregório, que, além de apresentar o caso do incêndio no CIP, reivindicou que o órgão viesse fiscalizar as condições daquela e demais unidades em Goiás. Segundo ele, a visita do Conama teria um peso “muito grande”, por se tratar de um órgão nacional de fiscalização, e traria dignidade para as famílias dos adolescentes vitimados.
“Fomos representando adolescentes internados e a comissão foi muito receptiva. A estrutura do CIP, apesar de não registrar, atualmente, superlotação, funciona de forma ilegal dentro de um batalhão de polícia. Isso fere diretrizes do Sistema Nacional De Atendimento Socioeducativo (Sinase), mas felizmente conseguimos a interdição da ala onde ocorreu o incêndio, para que nenhum outro adolescente tivesse que ser mantido naquele espaço”, observa. Conforme expõem números da Defensoria Pública, há 46 internos no CIP, seis a menos do que o necessário para lotação máxima.
Para Tiago, entretanto, as características físicas defasadas do CIP não compõem o “drama maior” da unidade, realidade esta que – segundo ele – não destoa dos demais centros de internação de Goiás e do Brasil. “Faltam atividades pedagógicas, educacionais, banho de sol entre outras iniciativas. Não queremos culpar o servidor, porque há uma sobrecarga muito grande de trabalho. Precisamos de uma postura do estado para trazer prioridade para o setor. Isso impede que os internos reingressem a sociedade de forma satisfatória e também que cumpram de forma mais eficaz a medida sócio educativa”.
Conforme expõe o defensor, falta um plano individual de atendimento por meio do qual seja possível identificar o que cada adolescente precisa cumprir para progredir de regime. “Não existe um parâmetro objetivo para ele saber quando irá deixar a internação. Além disso, o que mede o tempo de permanência deles nos centros são os projetos pedagógicos e educacionais, que deixam de ser executados. Na falta deles, um adolescente que poderia progredir de medida em seis meses vai ficando até o máximo permitido. Essa indefinição causa muita angústia”.
Brasil
O problema exposto por Tiago Gregório recebe o coro do Conama: questões que afetam o Sinasa não são exclusivas de Goiás, mas refletem, segundo Jimena, uma falta de priorização política acerca da ressocialização dos adolescentes em nível nacional. “É uma realidade encontrada em todo o país. Por isso a nossa atenção sobre o tema. O momento é de avaliação do Sistema, copm foco no aprimoramento, incluindo sua gestão, formação dos profissionais e espaços cívicos [unidades], como o estabelecimento do número de adolescentes que cada centro comportaria. Se nos deparamos com uma quantidade muito alta, isso inviabiliza, a execução de um trabalho adequado”.
Conforme expõe ela, o Brasil registra uma escalada da exclusão e marginalização que o país “não consegue vencer”. A tendência, nesse contexto, é de que o sistema se precarize ainda mais e o impacto disso poderá ser o aumento da violência na população contemplada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
“É triste que os estado brasileiro não consiga cumprir com suas convenções, inclusive as internacionais. Principalmente, quando há uma legislação tão robusta como o ECA. Com o projeto pedagógico afetado pela falta de recursos, falta de treinamento de profissionais e superlotação, a tendência é de recorrências. Também temos questões culturais muito fortes que se manifestam pela mentalidade punitiva de pessoas que conduzem o sistema. Isso sobrepõe a questão socioeducativa e não deveria ocorrer. Assim, o Sinase se torna uma reprodução do sistema prisional, quando a proposta seria a ressocialização. Qual é a experiência do adolescente de reavaliar sua conduta sem ter apresentadas as opções de mudança?”, questiona.
Holofote internacional
Também no último dia 27/6, a CIDH, com sede em Washington, publicou um comunicado à imprensa para declarar-se alarmada com a violência e mortes de adolescentes no Sistema Socioeducativo Brasileiro. Um dos exemplos citados, foi o mencionado incêndio ocorrido no dia 25/5, em Goiânia. A Comissão expõe o funcionamento irregular do CIP no 7° Batalhão da Polícia Militar e aponta a falta de condições de atendimento, bem como lembra a saga do Ministério Público em busca de se fazer cumprir um Termo de Ajuste de Conduta com o governo estadual, o qual – segundo a carta – nunca foi respeitado.
“A CIDH tem mostrado em repetidas ocasiões sua consternação por circunstâncias desta natureza em centros de privação de liberdade para adolescentes no Brasil e manifestado que neste país existe, desde muitos anos um contexto estrutural e generalizado de atos de violência, motins, fugas, superlotação, insalubridade das instalações e falta de programas sócio-educativos nestes centros, entre outras situações de violações dos direitos humanos. Tem expressado sua preocupação pelo fato de que quando os adolescentes entram em contato com o sistema de atendimento socioeducativo são expostos a violações de seus direitos, ao invés de representar uma oportunidade para apoiar sua inserção de modo construtivo e positivo na sociedade, para prevenir a reincidência, como prevê a legislação brasileira”, diz o comunicado.
Também por meio do texto, reivindica que o Estado Brasileiro cumpra as recomendações do órgão durante uma visita de inspeção de funcionamento do Sinase em novembro de 2017. A organização afirma que vê “um limitado compromisso para priorizar esta temática com a urgência que a CIDH havia solicitado e exorta de novo o Estado Brasileiro para que leve em consideração as recomendações feitas durante a visita de inspeção e tome medidas de acordo com os compromissos que o Estado assumiu ao ratificar os tratados internacionais de direitos humanos”.