MENSAGENS VAZADAS

Após saída de Moro, Deltan indicou prioridades para nova juíza da Lava Jato

A juíza substituta Gabriela Hardt assumiu processos da Lava Jato após a decisão de Moro ir para o governo de Bolsonaro

A juíza substituta Gabriela Hardt assumiu processos da Lava Jato após a decisão de Moro ir para o governo de Bolsonaro (Foto: Divulgação/Enéas Gomez)

Após o anúncio do então juiz Sergio Moro de que deixaria a magistratura para ser ministro do governo de Jair Bolsonaro (sem partido), a força-tarefa da Lava Jato manifestou a necessidade de mostrar que continuava “viva”. Para isso, procuradores indicaram à juíza substituta da 13ª Vara Federal, Gabriela Hardt, a importância de se realizar novas fases da operação.

Em 19 de dezembro de 2018, o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa à época, relatou em grupo de mensagens com procuradores ter combinado com Gabriela que indicaria as prioridades da Lava Jato. “Há 500 processos com despacho pendentes e [Gabriela] não sabe o que olhar. Combinei de criarmos uma planilha google e colocarmos o que é prioridade pra gente.”

A declaração de Deltan consta em documento feito por perícia contratada pela defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e protocolado na sexta (12) no STF (Supremo Tribunal Federal). Os advogados tiveram acesso a supostas mensagens trocadas por procuradores —obtidas por hackers— após decisão do Tribunal.

Procurado, o MPF-PR (Ministério Público Federal do Paraná) reiterou não reconhecer a autenticidade dos diálogos, mas afirmou que as mensagens não envolvem ilegalidade.

A juíza substituta Gabriela Hardt disse que receber procuradores e advogados de réus é uma “praxe”. Também afirmou nunca ter recebido planilha com prioridades do MPF e negou qualquer pressão da força-tarefa para avaliação de denúncias ou outras decisões.

Ao UOL, especialistas em Direito divergiram sobre a relação dos procuradores e a juíza com base nas mensagens vazadas (leia mais abaixo).

‘Seria o caso de ir conversar com a Gabriela’

A notícia de que Moro abandonaria a magistratura provocou apreensão. Em 1º de novembro de 2018, mesmo dia do anúncio, o procurador Paulo Galvão disse a colegas em grupo de aplicativo de mensagens. A grafia das conversas foi mantida conforme a petição de Lula ao STF.

“Mas olha todo mundo aqui passa por mim e comenta ‘de brincadeira’ q a LJ [Lava Jato] vai acabar… acho bom mostrarem trabalho esse ano ainda!!! seria o caso de ir conversar com a Gabriela para falar das operações pendentes de decisão?”, perguntou Paulo Galvão, procurador

Deltan: ‘oportunidade pra colocar ela a par’

No dia seguinte, em 2 de novembro, Deltan escreveu: “Precisamos marcar reunião com a Gabriela sobre as fases pendentes de decisão”. A procuradora Jerusa Viecili concordou.

“Muito importante que saiam este ano as 2 fases e deferidas por Gabriela, para demonstrar que a LJ [Lava Jato] continua viva”, disse Jerusa Viecili, procuradora

Dois dias depois, Deltan anuncia que a reunião aconteceria em 7 de novembro e afirma: “se mais alguém quiser ir, é uma oportunidade pra colocar ela a par dos principais desenvolvimentos”.

Deltan: Gabriela pede ‘em off’

Em 19 de dezembro de 2018, mensagens de Deltan indicam que ele conversou com a juíza sobre o andamento dos trabalhos e que ela teria sugerido o envio de informações “em off”.

18:50:24 Deltan Dallagnol – Gente, importante: 1) Gabriela não sabe o que é prioridade. Há 500 processos com despacho pendentes e não sabe o que olhar. Combinei de criarmos uma planilha google e colocarmos o que é prioridade pra gente. Quem quiser que suas decisões saiam logo, favor criar e indicar os autos, prioridadde 1, 2 ou 3 e Sumário ao lado, e me passar o link para eu passar pra ela

18:50:51 Deltan Dallagnol – 2) Gabriela não sabe as informações sigilosas. Hoje ela pediu pra informarmos em off coisas como a exist~encia de um potencial colaborador nos EUA (caso trading) e que MPF concordaria com desmembramento do processo

Em seguida, o procurador Athayde Ribeiro Costa afirma: “O potencial colaborador do EUA não esta entre os denunciados”. Ao que Deltan orienta: “seria bom falar pra ela o que possa ser relevante. ela ta meio confusa la rs”.

O então chefe da força-tarefa também indicou que Gabriela estava sobrecarregada em razão de falta de estrutura da 13ª Vara. Deltan temia que a juíza pedisse remoção. “A Vara tá uma bomba e sinal disso é que Gabriela pediu autorização pra trabalhar todos os dias do recesso.”

A situação na 13ª Vara Federal seria reflexo de o anúncio da saída de Moro ter dado a impressão de que a Lava Jato estava perto do fim. Para Deltan, isso era desejo “de alguém [Moro] que não aguentava mais [a rotina da Lava Jato]”. “E eles [TRF-4] compraram. Gabriela agora pediu apoio pro presidente do TRF [desembargador Thompson Flores, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região]. Precisamos ir lá explicar o que tem por vir, que caso está de vento em popa e que precisamos de apoio dele.”

No mesmo dia, Deltan relatou o que Gabriela teria dito sobre as denúncias: “Poxa, nao chegou nenhuma ainda… Expliquei que estamos trabalhando intensamente e prometi avisar qdo protocoladas”.

“Disse isto pra ela: Se ajudar, podemos enviar a minuta no estado atual para já ir apreciando. Está quase final. não sei se vendi o que não temos kkkk, mas mostra uma alternativa rs”, Deltan Dallagnol, em chat da Lava Jato sobre conversa com substituta de Moro

Gabriela é ‘faca na caveira’

No último bimestre de 2018, foram realizadas duas fases da Lava Jato: a 56ª, batizada de “Sem Fundos”, e a 57ª, “Sem Limites”. A primeira aconteceu em 23 de novembro e a segunda, em 5 de dezembro. Para a 56ª, Gabriela autorizou mandados de prisão e de busca e apreensão em 16 de novembro. “Gabriela é faca na caveira demais. Pedi uma decisao hj e ja saiu”, comentou Athayde Ribeiro Costa na noite desta mesma data.

Especialistas divergem sobre diálogos

O advogado Marcelo Figueiredo, professor de Direito Constitucional da PUC-SP, criticou a proximidade entre procuradores e a juíza. “Colaboração entre agentes da Justiça é saudável, mas combinar como agir viola a imparcialidade que o julgador deve ter.”

Já para Rubens Beçak, professor da USP, as mensagens mostram que se buscou apenas avançar no andamento dos processos, sem interferência no teor. “Eu não vi provas sendo torcidas, plantadas.” Fernando Reis, coordenador do curso de Direito da Universidade Cândido Mendes, concorda. Segundo ele, o problema seria haver um “prévio ajuste” entre as partes.

Professor da Faculdade de Direito da USP, André Ramos Tavares diz que não deveria haver essa aproximação demonstrada nos diálogos. Para ele, as mensagens mostram “falta de paridade de armas entre defesa e acusação, tendo em vista um aparente acesso especial do MP”.

Juíza fala em encontros com MPF e advogados

Procurada por meio da assessoria da Justiça Federal do Paraná, a juíza substituta Gabriela Hardt disse que, quando assumiu interinamente a 13ª Vara, “foram várias vezes que recebi em meu gabinete representantes do MPF e advogados de defesa de réus da Lava Jato”. “Esta é a praxe adotada até hoje.”

Em nota, ela afirmou que “alguns atendimentos às partes estão marcados na pauta da Vara”. “Na época, não eram marcados todos os atendimentos como tem sido feito mais recentemente. No entanto, não consta da pauta ou na minha agenda pessoal qualquer reunião no dia 7 de novembro, apenas consta que houve audiência para interrogatórios de alguns réus nos autos 5021365-32.2017.404.7000, sendo improvável que alguma reunião/atendimento tenha acontecido na mesma data.”

Gabriela continua na 13ª Vara Federal —responsável por ações da Lava Jato—, atualmente sob o comando do juiz Luiz Antônio Bonat.

Lava Jato vê reuniões como “zelo”

Ao UOL, o MPF disse que “ainda que os diálogos tivessem ocorrido da forma como apresentados, sua adequada compreensão não revelaria qualquer ilegalidade”. Para a Lava Jato, reuniões de procuradores com juízes demonstram “zelo e dedicação”.

Os procuradores dizem que, “de fato, juízes têm a obrigação de receber as partes, conforme previsto no próprio Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil”. “Essa obrigação também existe em relação a membros do Ministério Público. Conversas entre juízes e partes são legais, legítimas e corriqueiras em nosso sistema. É natural, por exemplo, que as partes defendam seus argumentos ou solicitem para juízes que decidam pedidos.”