Bancada evangélica de esquerda surge contra neopentecostais e conservadores
Até agora, a o movimento popular conta com 20 pré-candidatos de diversos partidos de esquerda em todo o Brasil, principalmente no estado de São Paulo
É em meio à recente prisão do presidente do PSC, Pastor Everaldo, que um grupo de jovens se juntou para lançar pela primeira vez uma bancada evangélica de esquerda nas eleições 2020. Nas discussões, estão a defesa do Estado laico, o direito ao aborto e a correção do “equívoco teológico” pregado pela bancada evangélica atualmente com representação na política.
Até agora, a Bancada Evangélica Popular conta com 20 pré-candidatos de diversos partidos de esquerda em todo o Brasil, principalmente no estado de São Paulo. “É mais fácil atribuir os problemas da sociedade a questões morais do que entender as razões da desigualdade”, diz o estudante de filosofia Samuel de Oliveira, 23, pré-candidato a vereador de São Paulo pelo PCdoB.
Morador de Sapopemba, na zona leste, ele diz que as igrejas com ambição política “usam o medo do Inferno” para dominar o povo. “Esses políticos deixaram de pregar a graça de Cristo para viver a mensagem do ódio”, diz.
“A gente quer apresentar uma outra perspectiva de ser evangélico, que não é sinônimo de conservadorismo, mas de justiça social e amor”, diz Samuel.
Contra o conservadorismo moral
O estudante de história e motorista de aplicativo Danilo Pássaro, 27, tinha 4 anos quando teve o primeiro contato com uma Assembleia de Deus no bairro onde mora, a Brasilândia, zona norte de São Paulo. Criado com os filhos do pastor, ele era levado aos cultos pela mulher do religioso.
Mas seu “chamado à espiritualidade” foi aos 17 anos, quando começou a frequentar a Igreja Batista, porque, “ao contrário das neopentecostais, ela não é fundamentalista”.
“Ela ensina que Jesus não quer ver outro explorado e que Deus não está lá longe no Céu, mas dentro de nós”, diz ele. “‘Ao cuidar dos que sofrem, estão cuidando de mim’, disse Jesus.”
Já o interesse pela política surgiu no movimento estudantil, época em que estudou teologia, e aos 20 anos, nas manifestações de 2013.
“Eu quero fazer política para o evangélico que se opõe ao conservadorismo moral que é imposto por alguns líderes evangélicos. Quando Dilma caiu [pelo impeachment, em 2015] e os neofascistas saíram do bueiro, eu já achava que os evangélicos neopentecostais poderiam tornar a retórica fascista um discurso de massa, o que foi confirmado na eleição de Bolsonaro”, diz ele, hoje filiado ao PSOL.
“Os neopentecostais têm dois fundamentos: a teologia da prosperidade diz que você é o empresário da própria fé e que doar uma oferta a Deus irá te abençoar. E a batalha espiritual defende que a vida na Terra é uma guerra de forças entre o bem e o mal. Essa batalha diz que o Brasil tem precisa se tornar evangélico para ser um país melhor. Para isso, a igreja deve tomar o poder e combater a diversidade, como a religiosa.”
“Isso é um discurso fascista, irmão. Se você fala em destruição do outro, é fascismo”, pondera Danilo. Ele diz que “as igrejas ocuparam o lugar que o Estado e a esquerda deixaram na periferia”. “Se você se sente mal, os irmãos vão te visitar, orar por você. Se não aprende nada na escola, na igreja tem curso de violão, leitura da Bíblia. Isso é pertencimento. Muitos irmãos não concordam com o discurso do pastor, mas não conseguem deixar sua igreja porque é difícil sair de um lugar que te trata como gente”, completa.
Feminista evangélica
A repercussão da morte do então governador paulista Mário Covas (PSDB), em 2001, é a primeira lembrança política de Simony dos Anjos, então com 15 anos e filha de pastores da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil. Desde então, seu interesse por política cresceu, assim com “as provações” que precisou enfrentar em casa e na igreja.
Hoje com 34 anos, a moradora do Jardim Veloso quer ser prefeita de Osasco pelo PSOL, na Grande São Paulo.
“Quando entrei na universidade, estudei a violência da igreja durante o Brasil Colônia. Foi para mim uma provação. Eu comecei a notar que muitas mulheres sumiam do culto e só voltavam depois que desapareciam as marcas da violência sofrida em casa”, conta ela.
“Então passei a visitar várias igrejas dizendo às mulheres que elas não pecavam por não serem submissas ao marido. Comecei a estudar o papel das mulheres negras nas igrejas evangélicas, que virou meu projeto de doutorado. Em seguida, derrubaram a Dilma [Rousseff] com aquele discurso por Deus, família, torturadores. Quando Bolsonaro se elegeu, eu decidi me assumir como uma feminista evangélica”, revela.
“As relações na igreja ficaram tensas, com pessoas mandando e-mail para o meu pai porque esperavam que eu me comportasse como pastora, embora eu fosse leiga. O [pastor] Silas Malafaia atacou o coletivo de que faço parte dizendo que a gente é herege, não é crente de verdade, que todo mundo ia para o Inferno. Comecei a receber mensagens dizendo que Deus ia acabar com os comunistas e ameaçaram sequestrar o filho da nossa coordenadora.”
Ela comenta a trajetória da deputada Flordelis, suspeita de assassinar o marido. “A Flordelis é uma evangélica que nasce como salvadora da periferia, mas sucumbe ao ser aparelhada por milícias e partidos políticos. A história dela é uma tragédia familiar. Se esse caso for levado a sério, o Brasil perceberá que o fundamentalismo se aproveita da vulnerabilidade das famílias para arrebanhar seguidores.”
Simony também defende aborto e planejamento familiar. “Na minha igreja, precisei dar aula sobre ciclo menstrual a meninas de 17 anos, que não sabiam como ele funciona. A proibição do aborto mata 1.500 mulheres por ano no Brasil. Muitas deixariam de abortar se fossem acolhidas por psicólogos nos hospitais. Quem chega no hospital dizendo que precisa cometer um crime?”
“A gente não precisa de uma Flordelis que adote tanta criança, mas de um Estado que cuide de todas”, afirma Simony.
Trans, pastora e pré-candidata
“No dia 26 de janeiro fui ordenada a primeira travesti clériga da América Latina”, diz Alexya Salvador, pré-candidata à vereadora também pelo PSOL em São Paulo. A pastora é cheia de recordes: professora estadual há 16 anos, foi a segunda mulher trans a se casar no Brasil, a primeira a adotar e, aos 39, uma das poucas que atravessam vivas os 35 anos, média de vida de um transexual no Brasil.
“Aos 7 anos comecei a frequentar a igreja católica. Eu já me sentia chamada a pastorear, mas aí veio a puberdade, as autodescobertas, e passei a me incomodar com a igreja dizendo que LGBT não é filho de Deus.”
Mesmo assim, Alexya só deixou a igreja aos 29 anos, depois de três tentativas de suicídio. Ela se casou um ano depois, mas seguiu vivendo como um homem gay por mais um ano porque ainda não se aceitava como mulher. “Foi quando encontrei a ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), no centro de São Paulo. Aí eu percebi que poderia ser uma liderança religiosa sendo quem eu sou”, lembra.
“Somos o terceiro casal LGBT com certidão de casamento no Brasil, há 11 anos. A primeira trans a adotar, em 2015. Hoje, o Gabriel tem 15 anos, um garoto com deficiência. Em 2016 veio a Ana Maria, menina trans de 13 anos, sempre rejeitada por casais cristãos que a devolviam quando ela dizia ser menina. Agora estou no processo para adotar minha terceira filha, a Deise, que fez 9 aninhos e também é trans.”
Ela diz que sua luta diária para ser aceita foi o motivo de se lançar na política. “Isso me fez perceber que não havia nenhuma vereadora transexual na Câmara. Eu não sou representada enquanto travesti nem enquanto evangélica, porque sou odiada pela bancada da Bíblia. Eu não quero doutrinar ninguém, mas dar voz às necessidades de pessoas que, como eu, são deixadas de lado pelo governo”, afirma.
“Estou cansada de reconhecer minhas irmãs no necrotério. Não nos dão emprego, só nos querem nas esquinas”, afirma ela.
“A bancada da Bíblia no Congresso não representa os valores do Evangelho. No começo, os cristãos dividiam o que tinham com os irmãos, cuidavam de quem era oprimido e agora condenam ao Inferno a mulher que depila o braço”, aponta.