SOBREVIDA

Diálogos entre Queiroz e ex-mulher de miliciano mantém caso das rachadinhas

Prova é a única obtida de forma independente de relatório do Coaf que está sob risco em julgamento do STJ

Mensagens entre Queiroz e ex-mulher de miliciano dão sobrevida a apuração sobre Flávio Bolsonaro (Foto: Reprodução)

As mensagens trocadas pelo policial militar aposentado Fabrício Queiroz com a ex-mulher do miliciano Adriano da Nóbrega são as provas que podem permitir sobrevida à investigação do caso das “rachadinhas” no antigo gabinete do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Elas são as únicas obtidas de forma totalmente independente de relatório do Coaf (órgão federal de inteligência financeira), que ainda está sob risco de anulação em julgamento no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Se esse documento for considerado ilegal, uma investigação sobre Queiroz pode ser reaberta a partir dessas mensagens.

As transações imobiliárias suspeitas de Flávio, reveladas pela Folha em janeiro de 2018, também poderiam ser usadas para uma eventual abertura de nova investigação em caso de anulação do relatório do Coaf pelo STJ. Contudo um arquivamento do procedimento sobre os imóveis do senador “contaminou” essa alternativa.

O filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro é acusado de liderar um esquema de “rachadinha” em seu antigo gabinete na Assembleia Legislativa, levado a cabo por meio de 12 funcionários fantasmas de 2007 a 2018, período em que exerceu o mandato de deputado estadual.

Flávio foi denunciado em novembro de 2020 pela Promotoria fluminense pelos crimes de peculato, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Ele nega as acusações.

Na última terça-feira (23), a Quinta Turma do STJ anulou a decisão que quebrou os sigilos bancário e fiscal de Flávio, Queiroz e outros investigados. Por 4 a 1, a maioria dos ministros entendeu que Flávio Itabaiana, juiz de primeira instância, não fundamentou a necessidade da medida.

O futuro da denúncia contra Flávio no caso das “rachadinhas” ficou em xeque com a anulação da quebra dos sigilos, e a corte superior ainda avaliará outros questionamentos do filho do presidente Jair Bolsonaro, como a legalidade dos dados do Coaf que serviram de base para a abertura da investigação. O relatório do órgão federal descrevia a movimentação financeira de Queiroz considerada atípica em 2016.

Apesar das possíveis saídas para retomar a apuração em caso de derrotas nos tribunais superiores, todas estão passíveis de discussão jurídica pelo fato de os investigadores já terem conhecimento, na prática, do teor das provas a serem levantadas.

“O juiz [que analisar um eventual novo pedido de quebra] vai precisar tomar um cuidado especial para ignorar as circunstâncias conhecidas do caso e se fundamentar em cima das evidências que poderão ser usadas”, afirma Celso Vilardi, advogado criminalista.

Especialistas afirmam que há vias judiciais para se obter nova quebra de sigilo. Mas a decisão do STJ contamina outras provas que não podem ser refeitas, como a apreensão de celulares e de documentos nas casas dos investigados.

Para investigadores, elas corroboram a tese de “rachadinha” indicada pelos dados bancários. O Ministério Público do Rio ainda estuda como recorrer da decisão proferida.

Em relação ao relatório do Coaf, a defesa do senador afirma que ele contém um detalhamento semelhante ao de uma quebra de sigilo bancário, mas sem autorização judicial. O ministro do STJ João Otávio de Noronha já sinalizou concordar com essa tese. O relator, Félix Fischer, discorda.

O MP-RJ afirma ter seguido as regras de compartilhamento de informações com órgãos de inteligência. Se esse relatório for anulado, a decisão derrubaria todas as provas decorrentes dele. O documento de inteligência financeira não pode ser refeito a fim de reabrir a investigação.

Neste cenário, a única prova preservada do caso são as mensagens entre Queiroz e Danielle Mendonça da Costa, ex-mulher do capitão Adriano, miliciano morto numa operação policial na Bahia quando estava foragido. Ela foi assessora de Flávio de setembro de 2007 a novembro de 2018.

As mensagens foram obtidas na Operação Intocáveis, que investigava a atuação da milícia em Rio das Pedras, comandada por Adriano. O celular de Danielle foi apreendido na ocasião.

Em março de 2017, Queiroz diz a Danielle que enviará seu informe de rendimentos da Assembleia Legislativa do Rio. Em janeiro de 2018, pede para que a ex-assessora lhe informe a quantia depositada naquele mês para ele “prestar a conta”.

Neste período, em 2017 e 2018, os dois também falam sobre envio de cópia da declaração do Imposto de Renda de Danielle para Queiroz.

O MP-RJ avalia que essas mensagens indicam que ela era uma “funcionária fantasma” com participação na “rachadinha”. Além disso, mostraria que Queiroz informava sobre os desvios “a outros integrantes da organização criminosa”.

Um outro conjunto de mensagens ocorreu depois de dezembro de 2018, quando o jornal O Estado de S. Paulo divulgou dados do relatório do Coaf que menciona Queiroz, documento sob questionamento no STJ.

Nesta conversa, Queiroz pede para que Danielle tenha cuidado com quem fala no celular e envia uma foto da página do jornal para a interlocutora.

No mesmo dia, Danielle conversa com o próprio Adriano sobre sua exoneração, ocorrida no mês anterior. Na conversa, o miliciano afirma que também contava com o dinheiro que ela recebia no gabinete, indicando a sua participação no esquema.

Em janeiro de 2019, Queiroz questiona se Danielle foi chamada para depor no MP-RJ. O PM aposentado deletou as mensagens, mas pelas respostas da ex-assessora os investigadores inferem que ela foi orientada a não prestar esclarecimento às autoridades.

Especialistas divergem sobre a possibilidade de uso das mensagens sobre a notícia do relatório do Coaf, caso ele seja considerado nulo pelo STJ.

De acordo com o advogado Breno Melaragno, a conversa segue válida. Para ele, o que importa é a sua origem legal, e não o teor da conversa.

“A causa que originou a prova é diversa do relatório do Coaf. Ela foi obtida numa investigação sobre milícias. Penso que será difícil o Judiciário interpretar o teor da conversa como ilegal”, disse ele.

O advogado Pierpaolo Bottini afirma, por sua vez, que o fato de a conversa só ter acontecido em razão da existência de uma prova ilegal, caso assim considere o STJ, a contamina.

“Esse trecho da conversa só existiu em decorrência do relatório do Coaf. A anulação deste contamina a parcela dos diálogos que a ele fazem referência”, afirmou Bottini.

O artigo 157 do Código Processo Penal afirma que “são também inadmissíveis as provas derivadas das ilícitas, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras”.

Uma medida judicial a partir das mensagens só poderia ser fundamentada a partir do teor delas. Uma quebra de sigilo bancário de Queiroz no período em que Danielle esteve no gabinete abrangeria quase todo o intervalo investigado no atual procedimento.

As transações imobiliárias de Flávio também poderiam ser usadas para apuração de suposta lavagem de dinheiro. A compra e venda de dois imóveis em Copacabana têm indícios do crime, segundo critérios do próprio Coaf: foram adquiridos com valor abaixo do pago em transação anterior e vendido por um preço muito maior num curto período de tempo (dois anos).

Nesta transação, o senador lucrou R$ 813 mil. De acordo com o MP-RJ, o filho do presidente pagou R$ 638 mil em espécie “por fora” com dinheiro da “rachadinha”. O valor se refere ao depósito feito pelo vendedor dos imóveis em sua conta no mesmo dia do fechamento do negócio —o pagamento feito oficialmente ocorreu por transferência bancária.

O reinício da investigação a partir deste caso é prejudicado pelo fato de o procedimento aberto ter sido arquivado, embora fosse de responsabilidade do mesmo grupo do MP-RJ que analisava o relatório do Coaf sobre Queiroz.

Ele foi reaberto depois por outros promotores que assumiram o caso das “rachadinhas” após Flávio assumir o cargo de senador. Eles usaram o relatório do Coaf para embasar o desarquivamento, o que, para criminalistas, contamina o ato caso o STJ o considere ilegal.

“Ele só pode ser desarquivado mais uma vez se houver um fato novo que motive a sua reabertura”, disse Vilardi.

O artigo 18 do Código Processo Penal afirma que “depois de ordenado o arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária, por falta de base para a denúncia, a autoridade policial poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”.

Os especialistas ouvidos pela reportagem concordam que um eventual avanço das apurações a partir das mensagens entre Queiroz e Danielle pode justificar um segundo desarquivamento.