Fernanda Montenegro, agora na ABL, não quer Bolsonaro nem Lula como presidente
"Tudo está em extrema desgraça porque existe a reeleição, e para ser reeleito vale entregar a pátria", disse a atriz
As eleições da ABL, a Academia Brasileira de Letras, são pautadas pelo sigilo e pelo mistério. Os imortais, como os acadêmicos são chamados, não dão uma palavra antes do pleito -e às vezes nem depois dele.
Mas Fernanda Montenegro parecia já saber que seria eleita para ocupar a cadeira de número 17, que pertencia a Affonso Arinos de Mello Franco, morto no início do ano passado. Embora humilde, cerca de uma hora antes da eleição sua fala se confundia, com verbos conjugados ora no subjuntivo, ora no passado, ao ser questionada sobre o que poderia trazer de novo à ABL.
“Preciso esperar ser aceita. Só vou fazer parte da academia daqui a três ou quatro meses, quando acontecerá a posse. Agora fui aceita, mas não tenho a posse”, afirmou, em entrevista por videoconferência, de seu apartamento no Rio de Janeiro.
Confusão verbal à parte, ela tinha razão. Entre os 35 imortais, 32 votaram a seu favor. Dois votaram em branco e um se absteve ou votou nulo, num imbróglio que a academia ainda está averiguando.
Não precisou nem cortejar os imortais, como é de costume nos meses que antecedem a eleição. É uma aposta arriscada, podemos dizer. Não deu certo, por exemplo, para Conceição Evaristo, uma das principais autoras negras do país, que tampouco fez o cortejo e recebeu apenas um voto ao tentar se eleger em 2018.
“Eu me inscrevi e me ausentei. Não dei entrevista, não cavouquei espaço nem temperei uma chegada. Isso não me compete. Me propus e saí de cena. Como atriz, meu papel é me preparar. Só se entra em cena quando chega a hora.”
Próxima de outros imortais, Affonso Arinos entre eles, Montenegro se tornou elegível no ano retrasado, a partir da publicação de “Prólogo, Ato e Epílogo”, sua autobiografia. A academia, que teve Machado de Assis como seu primeiro presidente, determina que é preciso ser brasileiro nato e ter publicado ao menos uma obra, de qualquer gênero literário e “reconhecido mérito”, para se tornar imortal.
Agora que as cortinas acabaram de se abrir, a atriz talvez possa começar a matutar seu papel na academia. Ela sabe que uma das principais tarefas que rege os encontros dos imortais, atualmente híbridos entre o mundo virtual e o de carne e osso, é o debate.
No entanto, diferente de boa parte dos membros da academia, que não raro recusam pedidos de entrevistas ou de aparições públicas, Montenegro não se furta de debater em público. “Nesta profissão, tenho que vir a público. Não posso me fechar num gabinete, num deserto, numa ilha e fingir que nada está acontecendo.”
Segundo ela, não há pergunta que não seja válida. Durante a entrevista que antecedeu sua eleição, concedida logo após ter chegado de seu sítio no interior fluminense, a atriz não poupou críticas ao presidente Jair Bolsonaro, tampouco ao ex-presidente Lula, ao discutir o cenário político do Brasil e a corrida eleitoral que se aproxima.
“Tudo está em extrema desgraça porque existe a reeleição, e para ser reeleito vale entregar a pátria, tirar o prato de comida de um desamparado, vale deixar que não tenham água encanada para se lavar desse vírus, vale não ter onde defecar porque não tem nem onde morar.”
“Estamos vivendo um momento complicadíssimo, porque esse horror [Bolsonaro] quer continuar, e o outro [Lula], apesar de ter sido bastante interessante, quer voltar. Mas com quem? Com o quê? Com qual atendimento político honesto e sadio, sem ter que comprar votos para continuar, por exemplo?”, disse. “[Se o Lula voltar], seria como uma reeleição.”
Ao ser questionada em quem votaria caso as eleições presidenciais estivessem marcadas para a próxima semana, Montenegro não revelou um nome, mas tampouco recusou uma resposta.
“Eu espero um jovem candidato, sem as heranças negativas que nos trouxeram para este sufoco. Não nego a importância dos governos que precederam este monstro, desde Itamar [Franco]. Mas este homem só está aí porque não se fez o que precisava ser feito. E não se fez em função de reeleições. O grande ganho político que poderíamos ter no Brasil seria o fim da reeleição.”
Não é de hoje o interesse de Montenegro por discutir política. Aos 92 anos, a atriz consegue voltar ao tempo com facilidade para falar de cada presidente que viu entrar e sair do poder. Ela se lembra de Getúlio Vargas como um político que “apesar de ter sido um ditador fascista, estruturou a república” e considera que “é por ele que, mal ou bem, hoje se tem um socorro social”.
Durante a ditadura militar, que enfrentou já como artista profissional, Montenegro saiu em defesa da democracia e subiu ao palanque para apoiar as Diretas Já, pouco depois de ter pego nas mãos de Cacilda Becker, um ícone do teatro brasileiro com poucos paralelos, para visitar um poderoso comandante do Exército e pedir o abrandamento das prisões e da censura.
“No meu tempo, era a política viva, direta, carnificada. Agora, há meios muito mais misteriosos de manipulação. Mas estou falando para você o que falaria num palanque. Graças a Deus, ainda se tem a possibilidade do posicionamento público. Precisamos só ver como isso se reflete no voto.”
Apesar da predileção por debater a conexão que considera inseparável entre política e arte, Montenegro gosta mesmo é de falar sobre os palcos. É para onde ela mais quer voltar tão breve quanto possível, motivo pelo qual não é tão presente, por exemplo, em outra academia da qual faz parte, a das Artes e Ciências Cinematográficas, responsável pelo Oscar.
“Não voto no Oscar, porque teria que assistir a um enorme volume de filmes e não tenho muito tempo. Dou graças a Deus de ainda estar me articulando, e meu compromisso com o teatro vem em primeiro lugar”, afirmou.
“Chega uma idade em que a gente se despluga. Uns desplugam mais violentamente, enquanto outros vão mais devagar. Eu sou dos que vão mais devagar, mas não sei quando serei tirada de vez da tomada. Pretendo voltar aos palcos, se a pandemia não se demorar muito mais a ir embora. Vou voltar, se Deus quiser.”