Governo nomeia agente da Abin para negociar vacinas da covid-19
O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nomeou em agosto deste ano um agente…
O governo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) nomeou em agosto deste ano um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para comandar um dos órgãos do Ministério da Saúde diretamente responsáveis pelas negociações para a compra da vacina e de outros insumos utilizados no combate à covid-19.
A nomeação, assinada pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, e publicada no DOU (Diário Oficial da União) de 10 de agosto, deu a Myron Moraes Pires o posto de coordenador-geral da CGCIS (Coordenação-Geral do Complexo Industrial da Saúde).
Três fontes relataram ao UOL que a nomeação do agente da Abin, sem a devida formação técnica para um cargo estratégico do ministério, gerou um “clima de terror” entre os funcionários da pasta. Além de Myron Moraes Pires, haveria outros agentes de inteligência, de acordo com seus relatos.
Os agentes da Abin atuam no ministério em assuntos de interesse direto do presidente Jair Bolsonaro, a exemplo da vacina contra covid-19, projetos de privatização de unidades de atenção básica e de saúde mental, além do monitoramento de entidades da sociedade civil que integram o Conselho Nacional de Saúde, informa uma dessas fontes com acesso direto a diversos servidores da pasta.
Procurados para se pronunciar a respeito da nomeação de Myron Moraes Pires, o Ministério da Saúde e a Presidência da República não responderam aos questionamentos da reportagem até a noite de segunda-feira (21).
Após a publicação da reportagem, a Secretaria de Comunicação da Presidência enviou nota dizendo que o único servidor da Abin no Ministério da Saúde é Myron Moraes Pires e que ele não participa das negociações para aquisição de vacinas.
Pessoas próximas ao gabinete de Pazuello revelaram a interlocutores sua preocupação com a presença de agentes da Abin na pasta, apurou o UOL.
Agentes da Abin em outros ministérios
Na semana passada, a Agência Pública revelou que ao menos 15 agentes da Abin estão lotados em ministérios e outros órgãos públicos. Levantamento feito pelo UOL no DOU encontrou 18 nomeações desse tipo durante o governo Bolsonaro —algumas delas envolvendo o mesmo servidor.
A título de exemplo a respeito da inadequação do agente da Abin para função nomeada de coordenação do CGCIS, sua antecessora imediata no cargo era farmacêutica de formação. De caráter técnico, a posição costuma ser ocupada por profissionais ligadas à área da saúde.
Segundo o médico sanitarista Adriano Massuda, professor da Fundação Getúlio Vargas e ex-secretário da SCTIE (Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos, área do Ministério da Saúde à qual o agente da Abin está diretamente subordinado, o desmonte do corpo técnico da CGCIS prejudica o enfrentamento da pandemia de covid-19.
“Houve um certo desmonte dessa coordenação a partir de 2016, com perda dos quadros técnicos”, explica. “Com a saída de Mandetta do ministério, entrou uma pessoa que não tem a menor formação técnica para compreender a área”, critica. Já Jorge Bermudez, pesquisador da Fiocruz e chefe do Departamento de Política de Medicamentos da Escola Nacional de Saúde Pública, destaca a necessidade de qualificação para ocupar o cargo.
“Como qualquer área, precisa ter o conhecimento específico [sobre o complexo industrial da saúde], como já tivemos no passado”, afirma.
O que faz a CGCIS?
Pires é oficial de inteligência da Abin, o mais alto cargo da hierarquia da inteligência brasileira. Em 7 de agosto passado, três dias do agente ser nomeado para o Ministério da Saúde, Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República), limitou-se a comunicar no DOU a cessão, por prazo indeterminado, do “servidor(a.) matrícula nº 909049”, da Abin, para ocupar o posto de coordenador-geral da CGCIS.
A CGCIS tem a função de ajustar a demanda de medicamentos, vacinas, equipamentos e insumos do SUS (Sistema Único de Saúde) e a oferta por parte de laboratórios e indústrias públicos e privados, nacionais ou estrangeiros, articulando para que a produção de itens considerados estratégicos seja suficiente.
O órgão também é um dos organizadores das PDPs (Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo), espécie de edital para financiar o desenvolvimento tecnológico da indústria brasileira, favorecendo a incorporação de tecnologia no parque produtivo que atende o SUS.
Pires está subordinado diretamente ao médico Hélio Angotti, que assumiu a SCTIE após o empresário Carlos Wizard desistir de assumir a função após a repercussão negativa de uma entrevista. Angotti é aluno do ideólogo Olavo de Carvalho e costuma ser mencionado pelo guru da extrema-direita em suas redes sociais, além de ter depoimentos elogiosos a ele publicados em sites olavistas.
Além das vacinas, o órgão comandado pelo agente da Abin se envolveu na produção de testes, equipamentos, insumos e medicamentos — incluindo a cloroquina.
De acordo com o Ministério da Saúde, em nota enviada ao UOL, a CGCIS já se reuniu com cinco laboratórios estrangeiros responsáveis por vacinas contra a covid-19 no último mês: Pfizer, Janssen, Bharat Biotech, Fundo Russo de Investimento Direto (RDIF) [responsável pela vacina Sputnik V] e Moderna.
Buscas no SEI (Sistema Eletrônicos de Informações) do Ministério da Saúde —repositório de documentos públicos mantidos por diversos órgãos federais— mostram oito menções diretas a Myron Moraes Pires em negociações das vacinas.
Contudo, a gestão de Pazuello bloqueou o acesso aos documentos, mesmo eles sendo públicos. A reportagem tentou acessar ao menos 50 documentos de diversas áreas do Ministério da Saúde, mas nenhum estava disponível. O general enfrenta críticas por desrespeito às políticas de transparência na gestão da pandemia.
O oficial de inteligência Myron Moraes Pires já participou do Conselho Nacional de Política Indigenista e do Conselho Gestor do Fundo Nacional de Segurança Pública. Em 2013, ele foi aprovado no curso superior de Política e Estratégia da Escola Superior de Guerra.