‘Lava Jato achou em mim um Cristo, eles não me largam’, diz Sérgio Cabral
Único político ainda preso pela operação, ex-governador do Rio diz querer confessar crimes fora da cadeia
O ex-governador Sérgio Cabral, 58, confessa ter liderado uma organização criminosa que praticou crimes como corrupção, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Mas ainda guarda indignação em relação ao tratamento da Operação Lava Jato do Rio de Janeiro.
“Eu estou preso podendo responder em casa, sem ameaçar a sociedade. Há sete anos que eu saí do governo. E não me largam”, afirmou Cabral à Folha em sua primeira entrevista na cadeia desde que foi preso em novembro de 2016.
Nos quatro anos e oito meses preso preventivamente, o ex-governador viu aliados e rivais políticos, empresários e doleiros entrarem e saírem da cadeia beneficiados por decisões judiciais que lhe foram negadas neste período. Atualmente, ele é o único político ainda preso em regime fechado pela Operação Lava Jato.
Os meus três antecessores vivos foram presos. Moreira Franco, [Anthony] Garotinho e Rosinha [Garotinho]. O meu sucessor foi preso: [Luiz Fernando] Pezão. Todos estão respondendo aos seus processos fora da cadeia”, disse ele, numa sala da Penitenciária Pedrolino Werling de Oliveira, no Complexo Penitenciário de Gericinó, na última segunda (2).
O ex-governador atribui ao acúmulo de processos (32) e penas (392 anos) impostos pelo juiz Marcelo Bretas a resistência dos magistrados em lhe conceder liberdade ou prisão domiciliar.
Flagrado com cerca de R$ 300 milhões em contas no exterior e tendo entre seus bens mais de 150 joias (a maior parte sem notas fiscais) e uma mansão em Mangaratiba, ele culpa a “mídia local” pelo estigma de político corrupto que ganhou após as investigações.
“Essa Lava Jato do Rio achou em mim um Cristo. O juiz achou em mim uma possibilidade de promoção pessoal. Um desconhecido se tornou a pessoa que prendeu Sérgio Cabral. […] O Supremo Tribunal Federal decidiu que só se deve ser preso com processo transitado em julgado. Estou cumprindo pena de maneira antecipada”, afirma.
Ele diz aguardar o acórdão do julgamento no STF que anulou seu acordo de delação premiada com a Polícia Federal e afirma respeitar qualquer decisão. Declarou que continuará confessando seus crimes mesmo sem a homologação do acordo, ainda que negue algumas das acusações.
Seu foco é sair da prisão. “Eu estou vendo muito cinza e muito branco. Sentindo muita falta de ver uma lua, um céu”, afirmou, em referência às cores das paredes do presídio.
Cabral tem contra si quatro mandados de prisão preventivas em vigor. Precisa derrubar cada um deles. A Primeira Turma Especializada do TRF-2, com uma nova configuração mais garantista, analisará na segunda-feira (9) um dos pedidos de liberdade.
FOLHA: Com a pandemia, o sr. não tem mais a rotina de sair para prestar depoimentos. Como tem sido esse período?
CABRAL: Sair era uma chance de, sobretudo, ver o meu pai. Ele tem mal de Alzheimer e a visita para ele é impraticável. Muito barulho, pátio, confusão. Lá [no tribunal], eu podia vê-lo antes da audiência.
A pandemia também foi muito dura com a família. Do ponto de vista familiar, o mais duro foi rever meu filho Matheus. Quando fui preso, ele tinha dez anos de idade. Ficamos um ano e três meses sem nos ver, em função da pandemia. O impacto foi muito grande. Me despedi de um menino e encontrei um rapaz.
FOLHA: Quando o sr. foi preso, imaginava que ficaria esse tempo todo?
CABRAL: Até hoje advogados, professores de direito, minha defesa, todos comentam a singularidade, para ser cuidadoso nas palavras, da minha prisão. Foram duas prisões preventivas ao mesmo tempo. Os juízes Sergio Moro e Marcelo Bretas combinaram a minha prisão, algo absolutamente ilegal. Foi uma violência muito grande do Estado.
Não imaginava [que ficaria preso esse tempo] porque a prisão preventiva é para quando você ameaça o processo, testemunhas, quando causa algum problema para a sociedade.
Saí do governo em abril de 2014. Hoje sou o único preso da Lava Jato em cadeia. Mais de 250 prisões foram feitas no Paraná, Rio de Janeiro e Curitiba. Todos estão respondendo em liberdade ou com cautelares diversas da prisão.
FOLHA: Acha que sua imagem, de estereótipo do político que se corrompeu, pesa?
CABRAL: Não, porque essa imagem caiu sobre outros políticos que respondem fora da prisão.
Não vou falar nomes. Só vou falar o seguinte: os meus três antecessores vivos foram presos. Moreira Franco, [Anthony] Garotinho e Rosinha [Garotinho]. O meu sucessor foi preso, [Luiz Fernando] Pezão. Todos estão respondendo aos seus processos fora da cadeia.
Todos os ex-governadores que foram presos, de Norte a Sul, com a pecha de terem praticado corrupção, estão respondendo fora da cadeia.
A particularidade do meu caso é o volume absurdo de sentenças de um juiz que resolveu dividir em [quase] 35 processos as acusações. Dificulta até a própria defesa.
Não quero me vitimizar. Mas é uma avalanche de processos como nunca se viu no Brasil. É uma gincana processual.
FOLHA: Como o sr. viu a decisão do Supremo de anular sua delação? Acha que pesou o fato de o sr. ter mencionado o ministro Dias Toffoli?
CABRAL: Não posso me manifestar sobre isso. Está em sigilo e o ministro [Edson] Fachin ainda vai fazer o acórdão.
Eu respeito as decisões do Supremo. Mas isso não tem nada a ver com [as prisões] preventivas. O relatório do ministro Fachin mostra o meu comportamento de colaborar com a Justiça.
FOLHA: As pessoas mencionadas em sua delação dizem que o sr. está desesperado em razão da prisão. O sr. é um delator confiável?
CABRAL: A tentativa é de me descredibilizar. Respeito isso. É direito de quem é perguntado fazer esse tipo de acusação sem pé nem cabeça. Não há desespero. Tudo o que falei tenho como provar.
Quem respondeu que estou desesperado aproveita a narrativa da mídia local que tenta me descredibilizar a todo instante. Deixei de ser um herói para ser um anti-herói.
FOLHA: Como assim um herói?
CABRAL: Eu era tratado como uma referência de gestão, recebendo os aplausos da mídia local, e de repente fui tratado como um… Não sei se é uma busca por credibilidade da imprensa local, me tratando de uma maneira… É claro que isso influencia as pessoas, o Judiciário. É um outro tratamento.
A prisão é um sofrimento. Pior do que a prisão, só um problema de saúde e a morte. Acordar e dormir atrás das grades, sem ver seus filhos e netos crescerem. Eu estou preso podendo responder em casa, sem ameaçar a sociedade. Há sete anos que eu saí do governo. E não me largam.
A mídia local massacra. Essa Lava Jato do Rio achou em mim um Cristo. O juiz achou em mim uma possibilidade de promoção pessoal. Um desconhecido se tornou a pessoa que prendeu Sérgio Cabral.
FOLHA: O sr. cresceu politicamente, chegou a ser cotado a vice-presidente. Ao mesmo tempo, acumulava US$ 100 milhões no exterior. Como convivia com isso?
CABRAL: Muito mal. Muito desconfortável.
FOLHA: Não parecia.
CABRAL: Foram US$ 100 milhões porque não usei.
FOLHA: Foi o que sobrou, não?
CABRAL: Não. Esses valores cresciam nas campanhas eleitorais. A minha despreocupação para uso pessoal era tão grande que estavam no nome do [doleiro Marcelo] Chebar.
FOLHA: Podia aumentar na eleição, mas [provas indicam que] havia um movimento periódico.
CABRAL: Isso, mas muito menor do que nas eleições. Outra coisa que gostaria de frisar é que no meu governo não houve superfaturamento.
FOLHA: Ainda que fosse caixa dois, o sr. não pedia pensando no que ia sobrar?
CABRAL: Exatamente. Eu reconheço esse erro. Resolvi falar tudo para a Justiça. Quando você se projeta na vida pública, você tem uma imagem. Decidi me despir de qualquer luta política. Meu compromisso é com a verdade.
O juiz Bretas diz que havia 5% em todos os contratos. Não é verdade. Havia grandes empresários de minha confiança. Esses certamente interpretavam esse percentual como algo da margem de lucro deles. Tanto que não há superfaturamento.
Quero assumir o que é verdadeiro e refutar o que é mentira. É um direito meu como cidadão.
FOLHA: Como se sentia crescendo politicamente mas com essa fortuna no exterior?
CABRAL: É uma fragilidade fundamental. O homem público tem que dar o exemplo. E você ter um telhado de vidro… Muitos conseguiram superar isso. Transformaram os milhões em televisão, rádio, fazenda, empresários. Eu assumi que errei e contei.
FOLHA: O sr. pretende manter sua confissão mesmo sem a homologação do acordo?
CABRAL: Do ponto de vista dos meus erros, vou assumir todos. Preciso por pingo nos is sobre o que errei e o que não é fato.
FOLHA: Hoje a Lava Jato está em baixa. O sr. se arrepende de ter confessado?
CABRAL: De jeito nenhum. O que me permite ter ênfase no que falo. Por isso, posso dizer o quanto é injusta a minha prisão.
FOLHA: Como o sr. vê a reabilitação política do Lula?
CABRAL: Não sou mais um agente político para fazer avaliação de quadros. Não cabe a mim falar sobre isso. É uma decisão de vida. Desfiliei do partido. Na minha vida, não é hora de política.
FOLHA: Por que tantos ex-governadores do Rio são acusados de corrupção? O que acontece no estado?
CABRAL: Eu inverteria a pergunta. Por que nos outros estados não houve isso? As descobertas ou prosseguimento das investigações? Francamente, né… É só no Rio de Janeiro que houve problemas?
FOLHA: Ao longo de todo esse período, o sr. viu muita gente entrar e sair da prisão, enquanto o sr. permanecia aqui. Teme ficar esquecido?
CABRAL: Não estou esquecido por quem importa: pela minha mãe, filhos e minha advogada. É lugar comum, mas é verdade.
Não sinto falta do palácio, do partido, do holofote. Não quero sair daqui para disputar uma eleição. Quero sair para cuidar da minha vida.
FOLHA: A sua soltura, como réu confesso, não pode soar como um símbolo da impunidade?
CABRAL: Quando saiu o Lula disseram isso. Quando saiu o Eduardo Cunha disseram isso. Quando saiu o governador do Paraná, Beto Richa, disseram isso.
FOLHA: Mas todos eles negam as acusações. O sr. confessa. Em algum momento o sr. precisa pagar.
CABRAL: O Estado democrático de Direito diz o seguinte: respeite as decisões jurídicas e legais. O Supremo Tribunal Federal decidiu que só se deve ser preso com processo transitado em julgado. Já paguei quase cinco anos de pena. Estou cumprindo pena de maneira antecipada.
Tem réus com 50, 80, 120 anos de cadeia e estão respondendo em liberdade ou cautelares diversas da prisão.
FOLHA: O sr. acha que já pagou pelo que cometeu?
CABRAL: A minha defesa e a Justiça vão dizer isso.
FOLHA: Como é sua rotina na prisão?
CABRAL: Procuro acordar cedo, 6h30, 7h estou de pé. Procuro ler muito. A literatura tem me salvado, junto com a música do rádio. Fiquei órfão da rádio Cidade, que era boa para fazer atividades físicas. Tomo banho gelado, que não é fácil. Faço meu banho de sol, não todos os dias.
A visita é o grande momento. Só quem já passou sabe. Abraçar seus familiares, desfrutar de uma mesa.
Eu estou vendo muito cinza e muito branco. Sentindo muita falta de ver uma lua, um céu. Tudo muito cinza e muito branco.