Supremo vê risco à liberdade de expressão e barra direito ao esquecimento
Apesar de maioria se declarar contra instituto, Marco Aurélio avalia que tese aprovada pode colocar imprensa sob 'espada de Dâmocles'
O STF (Supremo Tribunal Federal) rejeitou, por 9 votos a 1, a existência do direito ao esquecimento no Brasil.
Em votação concluída nesta quinta-feira (11), os ministros entenderam que a criação desse instituto jurídico no país poderia botar em risco a liberdade de expressão.
Os ministros Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Luiz Fux votaram contra o direito ao esquecimento, enquanto o ministro Edson Fachin se posicionou favoravelmente. Luís Roberto Barroso se declarou impedido para analisar o tema e não votou.
A avaliação predominante foi de que a Justiça não pode proibir um fato antigo de ser exposto ao público por respeito à privacidade e à intimidade da pessoa envolvida. Ao todo, a corte levou quatro dias de julgamento para concluir a discussão do tema.
A maioria dos integrantes do STF aprovou uma tese que deverá ser aplicada pelas demais instâncias e que determina que o direito ao esquecimento não existe para casos de “divulgação de atos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais”.
Marco Aurélio, que acompanhou os colegas no sentido de declarar a inexistência do instituto, afirmou que essa tese aprovada é temerária, por trazer insegurança. Na visão do magistrado, o texto colocará uma “espada de Dâmocles sobre a cabeça da imprensa”, que só poderá publicar o que “tiver investigado e concluído se mostrar verídico ou ter obtido licitamente”.
“A imprensa não é órgão investigativo para saber se o dado que lhe chega é um dado verídico ou não. E não cabe mitigar e admitir o direito ao esquecimento a partir do fato de se veicular algo que posteriormente se mostra ilícito.”
O ministro argumentou que a tese com referência a dados verídicos pode atrapalhar o trabalho da mídia. “Se a imprensa for compelida a isso, ela não informa a sociedade brasileira porque vai ter que parar, vai chegar a stand by para contratar investigadores e aí ter um laudo a respeito do fato que lhe chegou”, disse.
O julgamento foi retomado nesta quinta-feira com o voto de Cármen Lúcia, que se alinhou à maioria. A ministra recordou o período da ditadura militar, disse que a sua geração “lutou pelo direito de lembrar” e que tomar uma decisão no sentido contrário seria inadequado.
“Em um país de curta memória, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental, nesse sentido aqui adotado, ou seja, de alguém poder impor o silêncio e até o segredo de fato ou ato que poderia ser de interesse público, pareceria, se existisse essa categoria no direito, o que não existe, um desaforo jurídico”, afirmou.
A magistrada sustentou que não faz sentido proibir a veiculação de um fato verídico e obtido licitamente. “É preciso que se ponha luz para que a gente verifique e não se repita”, disse.
O julgamento ocorreu em um recurso com repercussão geral, o que significa que o entendimento fixado pela corte deverá ser seguido por todas as instâncias da Justiça.
O caso concreto debatido pelo plenário foi um recurso movido por irmãos de Aída Curi, assassinada em 1958 no Rio de Janeiro. O programa Linha Direta, da TV Globo, exibiu, 50 anos depois, um episódio em que reconstituiu o crime.
Os familiares dela, que foi violentada e assassinada e cujo caso foi amplamente divulgado pela imprensa à época, pedem uma indenização ao canal de televisão.
Kassio Nunes Marques e Gilmar Mendes entenderam que os parentes dela deveriam, sim, receber uma indenização.
Apesar de ter afirmado que não cabe reconhecer a existência do direito ao esquecimento no país, o ministro votou para remeter o caso novamente ao primeiro grau para que o juiz do caso decida o tamanho do valor a ser pago pela Globo à família a título de danos morais.
Cármen Lúcia, por sua vez, classificou o crime como “triste e doloroso”, mas disse que o caso entrou para “os anais da história”.
“Como apagá-lo da memória de todos? Como permitir que jovens não saibam? Como não saber que a cada nova morte que não é mostrada de uma mulher a gente precisa aprender outra vez na tragédia do dia a dia?”, argumentou.
Lewandowski foi o responsável por dar o sexto voto, que levou à formação de maioria na corte contra o direito ao esquecimento. “Com a abrangência e generalidade que o recorrente busca ver reconhecido, esse instituto nunca encontrou abrigo no direito brasileiro”, disse.
O ministro ressaltou que o irmão da vítima chegou a publicar dois livros sobre o tema, o que demonstra que não há como esquecê-lo.
Prevaleceu o voto do relator, Dias Toffoli. O ministro sustentou que admitir a existência do direito ao esquecimento “seria uma restrição excessiva e peremptória à liberdade de expressão” e ao “direito dos cidadãos de se manterem informados de fatos relevantes da história social”.
Na visão do magistrado, uma decisão no sentido oposto do Supremo seria incompatível com a Constituição e equivaleria a atribuir, “de forma absoluta e em abstrato”, maior peso ao direito à imagem em detrimento da liberdade de expressão.
Único a divergir, Fachin sustentou que a existência do esquecimento deve ser analisada caso a caso e aplicada apenas em casos excepcionais.
O ministro disse que a liberdade de expressão tem “posição de preferência na Constituição”, mas que a Carta também prevê a preservação do “núcleo essencial dos direitos de personalidade”.
“Diante da posição preferencial da liberdade de expressão no sistema constitucional brasileiro, as limitações a sua extensão parecem seguir um modelo em que, sob determinadas condições, o direito ao esquecimento deve funcionar como trunfo”, defendeu.
Marco Aurélio disse que não é adequado criar o instituto porque o país vive “ares democráticos”.
“O Brasil deve contar com memória, em fatos positivos e negativos, não apenas no agrade a sociedade. Não cabe em uma situação como essa simplesmente passar a borracha e partir-se para um verdadeiro obscurantismo”, frisou.
Fux, por sua vez, citou o aumento nos casos de violência contra a mulher na pandemia e ressaltou que o programa em discussão teve um caráter pedagógico para casos de feminicídio.
“O valor da reportagem está exatamente no resgate histórico do crime, tem um efeito pedagógico”, disse.
Segundo o ministro, não dá para dizer que, 50 anos depois, um relato do crime é mais dramático do que as reportagens veiculadas na época. “Não podemos reescrever o passado nem obstaculizar a memória, o direito à informação e a liberdade de imprensa”, frisou.
Já Gilmar Mendes fez uma defesa da liberdade de expressão: “Deve ser permitida a divulgação jornalística, artística ou acadêmica de fato histórico distante no tempo, incluindo os dados pessoais, desde que estejam presentes os interesses histórico, social e público atual”.
A maioria dos ministros aprovou a seguinte tese jurídica a ser aplicada por todas as instâncias do Judiciário:
“É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como um poder de obstar em razão da passagem do tempo a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais —especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral— e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.”
O que disse cada ministro no julgamento sobre direito ao esquecimento
Dias Toffoli
“Tanto quanto possível, portanto, deve-se priorizar: o complemento da informação, em vez de sua exclusão; a retificação de um dado, em vez de sua ocultação; o direito de resposta, em lugar da proibição ao posicionamento, o impulso ao desenvolvimento moral da sociedade, em substituição ao fomento às neblinas históricas ou sociais.”
Kassio Nunes Marques
“Mesmo que se admita por interpretação constitucional que tal direito decorreria da Carta de 1988, da dignidade da pessoa humana, do direito à intimidade, à imagem e à privacidade, a verdade é que a heterogeneidade dos litígios e das soluções mostram que para ser reconhecido esse direito precisaria ser adequada institucionalizado.”
Alexandre de Moraes
“Passados 15 anos, não se pode tocar mais nesse assunto? Ora, a história não se apaga. Estaríamos interferindo. O Poder Judiciário estaria interferindo breve e diretamente na liberdade jornalística.”
Rosa Weber
“Além de inconstitucional, a exacerbação do direito ao esquecimento é exemplo do tipo de mentalidade, que revestida de verniz jurídico, direta ou indiretamente contribui para, no longo prazo, manter um país culturalmente pobre, a sociedade moralmente imatura e a nação economicamente subdesenvolvida.”
Cármen Lúcia
“Em um país de curta memória, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental, nesse sentido aqui adotado, ou seja, de alguém poder impor o silêncio e até o segredo de fato ou ato que poderia ser de interesse público, pareceria, se existisse essa categoria no direito, o que não existe, um desaforo jurídico.”
Ricardo Lewandoswki
“O direito ao esquecimento jamais constituiu um instituto jurídico autônomo, independente (…) Com a abrangência e generalidade que o recorrente busca ver reconhecido, esse instituto nunca encontrou abrigo no direito brasileiro.”
Gilmar Mendes
“Deve ser permitida a divulgação jornalística, artística ou acadêmica de fato histórico distante no tempo, incluindo os dados pessoais, desde que estejam presentes os interesses histórico, social e público atual.”
Marco Aurélio
“O Brasil deve contar com memória, em fatos positivos e negativos, não apenas no agrade a sociedade. Não cabe em uma situação como essa simplesmente passar a borracha e partir-se para um verdadeiro obscurantismo.”
Luiz Fux
“O direito ao esquecimento não pode reescrever o passado nem obstaculizar o acesso à memória, o direito de informação e a liberdade de imprensa.”
Edson Fachin, único a divergir
“Diante da posição preferencial da liberdade de expressão no sistema constitucional brasileiro, as limitações à sua extensão parecem seguir um modelo em que, sob determinadas condições, o direito ao esquecimento deve funcionar como trunfo.”