Anatomia em 3D: empresa cria máquina para substituir cadáveres nas faculdades
Uma aula de anatomia pode ser uma experiência meio traumatizante. Não apenas pelo odor forte…
Uma aula de anatomia pode ser uma experiência meio traumatizante. Não apenas pelo odor forte do formol, mas pelos próprios cadáveres em variados estados de conservação. Se depender da empresa de tecnologia da saúde Csanmek, os corpos e o formol podem ficar para trás.
A companhia lançou recentemente o que estão chamando de Plataforma Multidisciplinar 3D. Se trata, basicamente, de uma mesa coberta por uma grande tela que pode ser usada para ver em detalhes as partes do corpo humano. Multidisciplinar porque ela também pode ser usada em outras aulas, como histologia e radiologia, e para veterinários.
A mesa possui mais de 5 mil estruturas anatômicas e permite que os professores convertam tomografias e ressonâncias magnéticas em 3D, além de ter um sistema de busca detalhado.
O idealizador do projeto é desenvolvedor-chefe e fundador da Csanmek, Cláudio Santana. “Trabalhei muito na área de saúde e conheci muitos médicos que falavam sempre que precisavam de tecnologia para melhorar as aulas e para a substituição de cadáveres. Eu conheci alguns produtos na Europa e nos EUA que faziam algo parecido, mas que tinham problemas: eram produtos muito caros e que não atendiam todas as metodologias de ensino no Brasil”.
Daí veio a ideia de investir em um produto nacional: “que pudesse atender nossa demanda de dificuldade de aquisição de cadáveres. Desenvolvemos essa tela. Parece um tablet gigante, de 65 polegadas e desenvolvemos um aplicativo que funciona como um gerenciador de imagens médicas e o transformamos em um aplicativo educacional. Nele o professor pode colocar imagens reais de tomografias e radiografias por exemplo e mostra pro aluno em sala de aula. Você pode colocar, discutir e depois reconstruir aquele corpo em 3D e fazer um planejamento cirúrgico”, conta.
Até agora, Santana conta que já possui 20 instituições de ensino brasileiras como clientes e começa a expandir para o exterior: “Exportamos dois para o México e até o final do semestre vamos mandar um para o Peru e estamos negociando com uma empresa dos EUA para distribuir a gente por lá”.
Ele conta que o produto pode ser personalizado para a instituição, o que faz seu custo variar entre R$ 150 mil e R$ 360 mil. Ele argumenta que a plataforma vale o investimento se comparado ao preço de manter um laboratório com cadáveres: “É muito mais vantajoso pegar um produto desse do que manter um laboratório com cadáveres. O custo de manutenção de um laboratório com cadáveres, dependendo da quantidade de cadáveres, compra uma mesa nossa ou duas até. Algumas instituições públicas possuem um laboratório muito grande, mas é a um custo muito grande”.
Mas e aquele professor com 40 anos de casa e muito desconfiado, dá pra convencer a substituir os corpos por uma máquina? Segundo Santana, até agora o aparelho tem feito um argumento forte: “A vantagem do produto é que ele consegue convencer os professor tradicionalistas. A princípio eles têm resistência. Uma coisa que as pessoas não sabem é que um cadáver tem algumas diferenças do corpo humano vivo. Não tem a mesma densidade dos tecidos, os vasos são ressecados, é difícil trabalhar com cadáveres. Muitas escolas já estão usando cadáveres sintéticos com as qualidades iguais a do corpo vivo. A tendência é não usar mais cadáveres”.
Como bom vendedor, Santana até propõe fazer as duas coisas, caso o médico esteja com o pé atrás: “Se o professor mais tradicional quiser, ele pode mostrar no cadáver e então trabalhar em maior profundidade com a mesa”. Agora, o desenvolvedor conta que está trabalhando em uma versão mais interessante do projeto: “Já estamos trabalhando com o piloto da realidade aumentada: o aluno usar um óculos 3D dentro da sala e o corpo aparecer em cima da mesa”.
Ou seja, se tudo correr bem, daqui alguns anos os alunos de Medicina estarão aprendendo anatomia com mesas eletrônicas com realidade aumentada, tal qual Tony Stark.
Opinião
A médica Jaqueline Brandão achou a proposta mais interessante, mas acha que só poderemos ficar livres dos cadáveres depois que a ideia da realidade aumentada for implementada de forma plena. “Acho que é uma boa ideia, por ampliar as possibilidades e simulações para o aluno. Mas acho que não substitui completamente o uso do cadáver ainda”.
Neste caso, ela acha que a mesa seria melhor utilizada em conjunto com o boneco sintético. Assim, o aluno poderia realizar procedimentos no software e em algo tátil, físico. Brandão também acredita que o contato inicial com a morte possui um efeito psicológico forte nos alunos: “Precisamos do contato com o ser humano, mesmo que morto. Acho até, que o contato precoce com a morte nas aulas de anatomia nos mostra que somos falíveis, humanos. Tenho medo que a utilização excessiva de tecnologia nos afaste ainda mais do ser humano e torne a medicina ainda mais mecânica”.
Já Carolina Delalibera, aluna de Medicina, é de opinião similar: “este novo sistema irá auxiliar no ensino por permitir que o aluno visualize as estruturas anatômicas e compreenda mais facilmente a relação entre elas – o estudo pelo cadáver não possibilita que a relação entre os órgãos seja visualizada”.
Ao mesmo tempo, ela destaca que o estudo de cadáveres é indispensável, inclusive, como disse a doutora Brandão, por oferecer um primeiro contato com o corpo humano. “O estudo do cadáver é sem sombra de dúvidas importante no ensino pois permite que nos familiarizemos com o corpo humano desde os primeiros anos do curso; o estudo aprofundado através de cursos de dissecação são imprescindíveis para a melhor compreensão e memorização da anatomia”, relata.
Porém, Carolina reconhece os problemas: “É fato que o estudo por cadáveres enfrenta grandes problemas: a aquisição de cadáveres para estudo tem se tornado cada vez mais difícil – no passado havia abundância pela grande quantidade de cadáveres indigentes – e consequentemente, o estudo por peças anatômicas antigas é difícil pela variação que apresentam em sua qualidade”.
Ela acha que o modelo ideal associaria a plataforma 3D a um boneco sintético, mas que até lá seria melhor usar a mesa em associação com os cadáveres: “Ao meu ver, até que se consigam de fato prover cadáveres sintéticos que realmente ofereçam qualidades iguais ao do corpo humano, o estudo deve ser realizado com uma associação entre plataforma e cadáver”.