Dia da Mulher

As mestres do jogo: mulheres assumem a liderança de grandes equipes online

Conversamos com duas jogadoras que assumiram a bronca de serem GMs de jogos online

Desde os primeiros jogos online dos anos 1990, como Ultima OnlineEverQuest, existem guildas. As guildas são grupos de jogadores que se reúnem para jogar juntos com certa frequência. Conforme o tempo passa, estes jogadores formam laços e desenrolam papéis: alguns jogam de forma mais ofensiva, outros na defensiva, e assim por diante, dependendo de cada jogo. O tamanho de uma guilda varia de título para título, podendo ter centenas de membros ativos. E jogar online, mesmo que seja só com seu irmão, pode ser um caos.

Se você já teve a experiência de jogar qualquer video game online, sabe que a coisa toda pode ser meio caótica. As pessoas se desentendem e brigam, não sabem jogar em equipe, se posicionam mal. Se você estiver jogando com um bando de desconhecidos – e às vezes até gringos – é ainda pior e mais complicado, o que não apenas leva à derrota, mas à muito bate boca no chat dentro e fora do jogo. Em uma guilda, existe uma figura para administrar e até mesmo ser árbitro para impor a ordem e organizar essa multidão digital de pessoas: os guild-masters, ou GMs, para facilitar.

Não é uma tarefa fácil: fica sob responsabilidade do GM organizar horários e eventos, traçar estratégias e administrar o dinheiro in-game dos membros da guilda. Mas fora isso também cabe a ele muitas vezes ser pai, mãe, conselheiro e amigo de centenas de pessoas que podem ser amigas próximas, conhecidas ou até completos estranhos. Difícil de entender? Pense assim: o GM é o líder e tem um papel próximo ao do capitão de um time de futebol, mas tendo que lidar com muito mais gente e a quantidade de problemas que vier com essas pessoas.

Esse papel fica ainda mais difícil se você for mulher: embora mais da metade dos jogadores no Brasil sejam do sexo feminino, o meio gamer ainda possui um machismo arraigado além de ser considerado bastante tóxico. Assumir um papel de liderança, nessa comunidade, duplica um trabalho já hercúleo.

“Em geral, todo game é machista”, conta Júlia Grillo, GM de uma guilda com pouco mais de 70 membros, “quando eu era mais nova eu fazia meus personagens homens para disfarçar um pouco isso”, disse ela sobre sua experiência em um jogo anterior. Atualmente ela está à frente de um grupo no game The Elder Scrolls Online (ESO para os íntimos) e já acha a comunidade deste jogo especificamente mais receptiva. “Acho que é uma comunidade bem maneira para mulheres e tem bastante menina jogando. Eu nunca passei por nada desagradável em ESO”, disse, “Se algo acontecer eu deixo passar, mas se acontecer de novo, é fora”.

Como em muitos casos, a liderança acabou caindo de paraquedas no colo de Júlia, que não esperava assumir a posição de GM.  Houve até uma disputa sobre se outro membro, homem, deveria pegar a liderança, mas ele foi derrotado em votação: “Não era pra eu ser GM, mas acabou ficando comigo”, explica, “perguntei, ‘gente, vocês querem que eu dê o GM pro Fulano?’ e disseram ‘se ele virar GM eu saio’. Então tudo bem, ficou comigo. Mas nunca tive vontade, pra mim tanto faz”.

Atualmente com o teclado queimado, ela está impossibilitada de jogar, mas isto não a impede de participar e encorajar o grupo. Sobre as desavenças, Júlia às vezes precisa intervir, nem que seja apenas para acalmar os ânimos, mas que geralmente ela apenas encoraja os jogadores a conversar: “O pessoal tende a se resolver, eles se conversam. Eu dou minha opinião, podem concordar ou não, mas geralmente não tenho que resolver pepino não”, disse ela.

Um problema maior

“Não só o meio gamer, mas todo lugar é meio machista”, disse Pâmela Barreto que, então com apenas 16 anos, foi GM de uma guilda com mais de 400 pessoas. Dessas, apenas três, contando com ela, são mulheres e a maior parte dos membros tem mais de 30 anos. “Eu tive menos experiências negativas do que eu esperava”, disse ela que, assim como Júlia, começou a jogar com personagens e nomes masculinos, “Eram coisas que eu fazia para evitar problemas”.

Este não foi o caso da guilda em que ela sempre jogou usando sua voz e nome real, mas logo algo apareceu: “Tinha um cara que era, digamos, assanhado, e ele veio me dizer umas coisas. Mandei ele parar”, conta, “Se um cara me incomodar, o que penso é: você bane, bloqueia e pronto. No mundo digital, é mais fácil se desconectar de algo que está te incomodando”.

Na sua experiência, ela às vezes chegou a ser questionada em suas decisões por ser mulher e que chegou a precisar se impor. “Uma vez um cara veio me cobrar porque eu coloquei outra pessoa na moderação. Quem decide sou eu!”,  disse. Assim como Júlia, a liderança foi passada para ela por outro jogador veterano, homem, o que causou alguns problemas: “Eu era próximo dele, mas algumas pessoas disseram que ele me passou porque eu era mulher. Eu lembro do pessoal ficar com o pé atrás”.

“E aí eu tinha que lidar com essa galera, que era bastante competitiva”, conta ela, que encarou o desafio de frente, “Eu estava gostando de liderar. Eu sou a líder do meu grupo de amigos, eu gosto de tomar a frente, tomar atitude”. O antigo líder até quis assumir a posição de novo, mas ela não deixou: “Ele voltou e começou a agir como se tivesse voltado a ser GM. Tive que dizer ‘não, eu sou a líder’. Ele ficou muito bravo comigo e me mandou coisas horríveis pelo WhatsApp. Tenho os prints até hoje”.

Assim como a Grillo, a liderança acabou passando por uma votação e ela venceu. “Se quisessem que eu saísse, tudo bem, mas a maioria gostava de mim”. Ela conta de um caso em que um homem fez comentários de teor sexual em meio ao grupo para outra jovem, que não respondeu: “Os outros homens falaram para ele ‘cara, deixa disso’, mas ele disse ‘ela não falou nada, ela tá gostando'”. Pâmela conta que foi conversar com a jogadora porque ela saiu do grupo e chorou e foi conversar com ele: “Foi uma coisa muito desagradável que aconteceu na guilda. Você não tem direito de fazer essas coisas. Se a outra pessoa não quer, você tem que parar. Ela era mais na dela, ela não gostou e não sabia como agir”.

Ao contrário de Grillo, porém, ela teve que lidar com muita arbitragem: “Guilda dá muito trabalho. Tinha muita intriga e o pessoal vinha sempre falar pra mim”. Pâmela vê a situação como uma aprendizagem constante. “Eu vi algumas coisas de machismo, como alguém dizer ‘vá lavar uma louça!’ e eu responder ‘vá morrer na guerra!’ (risos). Fui sexista também. Acho que todo mundo tem um pouco de preconceito”, apontou.