Vício?

Distúrbio dos jogos: é preciso diferenciar diversão de alienação

Especialistas comentam a entrada do vício em video games na lista de distúrbios mentais da OMS

No dia 2 de janeiro a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu o vício em video games na sua lista de distúrbios mentais, definindo o estado de vício como “padrões repetitivos ou recorrentes de comportamento” que causam “prejuízos significativos” ao indivíduo.

O paciente viciado apresentaria os mesmos sintomas que em outros casos de vício sendo a mais óbvia “falta de controle sobre a atividade” e “prioridade da atividade sobre interesses da vida ou atividades do dia-a-dia” ou “persistência na atividade apesar de consequências negativas visíveis”.

A notícia chegou ao meio gamer com um grande baque conforme a manchete se espalhava como fogo pelos principais jornais do mundo. Para o psicólogo Danilo Suassuna, especializado em adolescentes e jovens adultos, a inclusão era de certa forma esperada: “O comportamento de vício é visível em vários casos, a diferença agora é que a OMS demora pra atualizar, dando respaldo pra algo que a gente vê no consultório no dia-a-dia”.

Ele acredita que este reconhecimento da OMS, mesmo que tardio, é importante: “é uma questão importante, os pais estão muito preocupados com isso porque os meninos às vezes deixam de ir em eventos, em casamentos, pra ficar jogando, mas temos que ter sempre cuidado”.

O psicólogo conta que o consultório está cheio e que o comportamento de um adito, seja no que for, é bem próximo: “O problema é que vício é vício: quando a pessoa prefere alguma coisa mais do que outra ou deixa de fazer algo importante, como por exemplo sair com os amigos, por causa dessa coisa. Então jogo pode ser considerado vício? Pode”.

Patologização

Porém, para Danilo, é preciso muita calma nesta hora para se evitar generalizações que podem ser prejudiciais a todos os envolvidos: “A gente tem a capacidade de pegar algumas notícias e generalizar. Temos pessoas que são entusiastas do jogo, pessoas que são profissionais do jogo, pessoas como youtubers ou streamers que vivem de jogar, transmitir o jogo e ganhar dinheiro com isso. Então o cuidado que a gente tem que ter – pais, profissionais, mídia –  é diferenciar o cara que está viciado, seu estado é quase um distúrbio mental, sem controle sobre o jogo, deixando sua vida de lado, ele não consegue parar, prioriza sempre o jogo, do cara que é um entusiasta”.

Como ele descreveu, é uma notícia que afeta diretamente dois grupos: os jogadores comuns e fãs, a quem ele chama de entusiastas, e também o circuito profissional, que gerou receita de US$ 696 milhões em 2017 e que deve bater US$ 1.5 bi até 2020.

Mesmo assim, os e-sports ainda são malvistos ou percebidos com desconfiança por muita gente. Afinal, para se tornar um e-atleta, é preciso gastar horas treinando diariamente. “Não vejo ligação de vício em vídeo games com o e-sports de uma maneira geral. O e-sports é uma atividade esportiva de alto rendimento que a cada dia que passa está cada vez mais profissional”, explica Alexandre Jorge, diretor da Team One, time formado originalmente em Goiás e atual campeão brasileiro de League of Legends.

“Em qualquer profissão ou modalidade esportiva existe um alta carga intensiva de dedicação. Hoje no e-sports as longas horas de trabalho são acompanhadas por uma gestão profissional superior a de muitas empresas de outros ramos”, destaca Alexandre. Ele chama atenção para o profisssionalismo do meio: “A maioria das empresas contam com psicólogos, médicos, fisioterapeutas, treinadores, analistas, entre outras pessoas que tem o seu foco quase que 100% no bem estar físico e mental do atleta para que o mesmo alcance o mais alto nível de desempenho com excelentes condições”.

Team One após vencer o campeonato brasileiro de LoL (Foto: Reprodução)

Alexandre não vai tão longe em dizer que vício em games não existe: ele defende que existe vício em várias coisas e que, no caso dos jogos, é importante separar essa visão de patologia com um meio profissional muito sério e extremamente competitivo: “Eu acredito que a OMS tratar o vício em video games como um distúrbio mental nada mais é do que uma forma de tentar ajudar a população doente”, disse, e acha que a OMS fez bem em reconhecer: “acredito que a pessoa viciada – seja em vídeo games, drogas, alimentação, sexo, exercícios – precisa de atenção da OMS, afinal eles são responsáveis pela saúde de todos os povos”.

Enfim, completa, Danilo, é preciso evitar a “patologização” dos video games: “É preciso perceber a linha entre video game como diversão e video game como alienação”.

“Senão o que vira: a mídia precisa de notícia, o psicólogo precisa de cliente, o psiquiatra precisa de paciente e a indústria farmacêutica precisa vender. Isso acaba colocando todas as pessoas na mesma caixinha”, completa.

Mudanças culturais

Para Danilo, também é preciso levar em consideração a diferença geracional: “Essa geração provavelmente não brinca na rua como a minha geração – eu tenho 38 anos – brincava. Ela não sai porque o mundo está perigoso, você tem medo de ser assaltado, a molecada acaba ficando em casa”. Ou seja, entre a geração de pais e a geração de filhos, o mundo mudou, não apenas em tecnologia, mas em comportamento e socialmente.

O hoje engenheiro eletricista Marcos Augusto conta uma experiência parecida: “Na minha família muitas vezes já falaram que eu era viciado em jogos, principalmente quando eu era mais novo. Eu jogava muito um jogo online que se chama Ultima Online. Eu jogava este jogo pois era o que meus vizinhos e amigos jogavam. Era uma oportunidade de interagir com eles e me divertir, ou seja, era a mesma situação que se eu fosse jogar bola, mas envolvia um computador em vez de encontrar pessoalmente”.

Mais tarde, os video games se tornaram o veículo principal que Marcos usou para fazer novas amizades quando foi fazer faculdade fora de Goiânia: “Mais velho, já na faculdade, eu morei em uma cidade onde eu não tinha amigos, então os jogos acabaram sendo meu método de diversão e relaxamento. Com o tempo este gosto por jogos me faria conhecer várias pessoas, inclusive várias amizades que mantenho até hoje”.

Muito popular nos anos 1990, Ultima Online é, até hoje, uma das comunidades online mais ativas do mundo

“É uma mudança de comportamento que a gente tem que entender e não generalizar, senão o consultório de psicologia enche e a gente não vai entender qual o problema da criança ou do jovem”, explica o psicólogo. Danilo também chama atenção para o fato de que video games, jogados de uma maneira saudável, podem até trazer benefícios. Algo que muitos pais não estão dispostos a aceitar: “Ali no jogo o jovem bota a sua agressividade pra fora, ele tem uma interação social, lidando com outras pessoas em uma comunidade da internet, não que exclua a necessidade da interação face a face. As habilidades que o jovem desenvolve dentro do jogo podem sim ser úteis a longo prazo resultando, por exemplo, em uma excelência profissional”.

Ele finaliza: “Eu sou da época do Sonic. Hoje se eu vejo eu fico tonto, não consigo jogar em primeira pessoa. Isso não é problema para estes jogadores que tem todo um leque de novas experiências e para as pessoas mais velhas é difícil de entender”.

Quando o jogo não é o problema

Como Danilo disse, o video game muitas vezes é um escape catártico em que o jovem jogador bota muita coisa pra fora e sente diversas emoções enquanto navega pelo mundo digital. Sendo assim, muitas vezes o jogo pode ser usado, pelo adolescente, para lidar com problemas maiores.

É o que conta Marcos Augusto: “Já conheci pessoas que poderiam ser considerados ‘viciados’ em video games, mas eram pessoas que estavam depressivas. Estas pessoas viam no video game um local onde se sentiam aceitos e bem consigo mesmas. e Portanto não era o ‘vício’ no jogo o problema e sim uma consequência de outros problemas.”

Isto aconteceu com o próprio engenheiro quando estava na universidade. Com depressão e problemas familiares, os jogos eram um consolo: “em um dos anos vários problemas familiares surgiram e minha depressão piorou. Era complicado sair de casa e continuar a faculdade se tornou um desafio, mas o video game continuava sendo uma maneira de relaxar e esquecer destes problemas e se tornou mais comum eu jogar por várias horas”.

Muita gente culpa os jogos sem levar em consideração as diversas mudanças pelas quais o mundo passou

Marcos não acredita que tenha sido viciado, mas apenas que os video games foram uma válvula que o ajudou a lidar com tempos difíceis: “Não acho que o video game tenha sido o problema. Ele na verdade me ajudou a ter uma válvula de escape para lidar com meus problemas. A medida que minha depressão começou a melhorar também houve uma redução considerável no número de horas que eu jogava”.

Danilo comenta que há muitos casos como o de Marcos no qual o video game pode ser uma ferramenta – ou, no caso de adolescentes, até uma máscara –  para lidar com problemas muitos maiores e que, muitas vezes, pais preferem culpar o video game ao invés de perceberem o problema maior: “É uma forma de lidar com a dificuldade que a gente tem de interagir com pessoas, é uma forma fácil de encontrar novos amigos. Ele ali conversava com essas pessoas, criava laços”.

Ele finaliza: “A gente precisa saber diferenciar se a gente joga de forma saudável, saber utilizá-lo em nosso favor, o adolescente entender porque passa tanto tempo jogando, porque às vezes a criança está passando por um problema gigantesco como depressão, síndrome do pânico, com dificuldade de se expressar com a família, mas ali no jogo ele consegue se expressar”.