Mulheres na tecnologia: “devemos celebrar com muito fervor”
Conversamos com algumas profissionais da área tecnológica sobre o machismo, as recompensas e obstáculos do mercado de trabalho
Trabalhar em tecnologia ainda é um desafio dobrado para a mulher. Em qualquer evento, a presença feminina ainda é pequena. Entre os homens, é comum ainda encontrar muito preconceito e piadas machistas. Para muitos, as mulheres são invasoras de um espaço plenamente masculino.
É uma batalha morro acima para conseguir o reconhecimento – e às vezes até o mesmo salário – que seus colegas homens. Ao mesmo tempo, é uma área instigante. É difícil encontrar alguém da área tecnológica que não fale disso com paixão: “Trabalhar com tecnologia é algo desafiador, pois é uma área em constante mudança, que exige bastante estudo, aprimoramento e ser autodidata”, conta Pollyana Barbosa, chefe da TI da Assembleia Legislativa de Goiás.
Ela está na Assembleia há oito anos e antes já estava inserida no mercado. Mesmo com tanta experiência, conta que o machismo sempre esteve presente. “Desde que fiz a faculdade até hoje ainda há muito preconceito com relação a mulher nessa área de tecnologia. Quando vou em eventos da minha área, vejo que ainda é muito pequena a participação de mulheres em relação aos homens, as pessoas ainda ficam desconfiadas na competência das mulheres nessa área”. Conquistar o respeito é uma tarefa árdua: “Para uma mulher crescer e ser reconhecida, além do conhecimento, ela tem que conquistar o respeito. Faz 9 anos que ocupo cargo de chefia na área de TI, mas foram anos para as pessoas reconhecerem do que sou capaz. Uma vez um funcionário chegou e relatou: ‘quando entrei aqui e me apresentaram você como chefe, pensei que você iria ser apenas figurativa, mas vi que fui preconceituoso, que você realmente sabe o que faz'”.
Ela acha que parte do preconceito vem desde a infância, no colégio: “Desde a época escolar, tem esse estigma que os meninos são melhores em Exatas. Acho que deveriam incentivar mais nas escolas as meninas a gostarem desta área, mostrar do que elas são capazes. Tenho muita esperança que essa nova geração, com o acesso mais cedo a tecnologia e a jogos, incentive as meninas a se aventurarem mais no mundo tecnológico e optar por ele para seguirem uma carreira”.
Perguntei a Pollyana sobre o que achou do filme Estrelas Além do Tempo. Mesmo mostrando a luta de matemáticas nos anos 1960, ela disse que se identificou: “Fiquei muito emocionada com a luta dessas mulheres e me identifiquei em alguns momentos. Ele realmente descreve o quanto é difícil para as mulheres se sobressaírem em áreas consideradas predominantemente masculinas”.
Já a programadora Jullie Utsch lembra que até os professores do seu curso eram desrespeitosos: “Havia uma discriminação gigantesca por parte dos professores, principalmente. Já ouvi todo tipo de ofensa e assédio em sala de aula, que os professores chamavam de ‘brincadeiras’. Essas ‘brincadeiras’ iam desde dizer que as mulheres estavam no curso para arrumar marido até sugerir que a gente fizesse serviços domésticos ao invés de trabalhar com informática”.
Ela relata que teve a sorte de encontrar empregos em que os colegas eram tranquilos, mas em que ela era a única mulher na equipe: “É desestimulante”, relata. Jullie acabou mais envolvida graças à comunidades de mulheres na tecnologia que incentivam outras mulheres a estudar e entrar na área, como a PyLadies e a Outreachy.
Jullie acabou na Thoughtworks, uma empresa de informática que incentiva a participação feminina: “Lá é um ambiente onde somos estimuladas a conversar sobre machismo e a mitigá-lo. A empresa tem uma série de políticas anti-assédio e temos um grupo organizado de mulheres que se reúne periodicamente e cria ações para empoderamento feminino”, conta.
A jovem acredita que os incentivos são fundamentais e que as empresas precisam abrir as portas: “Não é à toa a grande maioria das mulheres evade os cursos de TI. Essa evasão é tão grande que é difícil que elas cheguem ao mercado. Mas uma vez no mercado, muitas vezes se sentem pouco estimuladas, recebem tarefas pouco desafiadoras. Acho que iniciativas como a que participei são fundamentais. Não basta atrair as garotas jovens para a área, é preciso que as empresas deem as condições para elas ficarem”.
Porém, deste que ela era estudante, Jullie acredita já ver uma mudança vindo por parte das próprias mulheres: “O primeiro passo é admitir que é um problema. Nesse ponto, acho que a coisa toda melhorou nos últimos anos. Quando eu era estudante, me sentia muito só. Mesmo as outras poucas meninas do curso não compartilhavam este sentimento. Era um grande tabu. Hoje vejo as meninas se organizando nas escolas, fazendo grupos de apoio e resistência e acho incrível. Meu desejo é que eles se multipliquem”.
Já a analista Ana Lyvia Rosa relatou que já sofreu muita perseguição, trabalhou em ambiente hostil e ouviu disparates. Ela conta que o incentivo para entrar na área veio de família: “Tive muito incentivo do meu pai. Tínhamos um MSX gradiente em casa e ele me ensinou minha primeira linguagem de programação: BASIC. Depois ao escolher cursar Ciência da Computação na universidade minha família incentivou bastante”.
Ela concorda com Jullie e Pollyana: o incentivo precisa aparecer na infância. “Para mim é algo que deve estar presente no dia a dia de educação das meninas, desde cedo e o mais natural possível, como é feito com os meninos. É necessário que passemos a incentivar nossas garotas com jogos de lógica, com atividades estimulantes, que possam ir além da grande maioria dos lares, onde a menina é incentivada com brinquedos de cozinha, bonecas e casinha, somente”, comenta.
Ana Lyvia também faz parte da iniciativa Mulheres na Tecnologia, uma organização sem fins lucrativos que visa aumentar a participação feminina na área. Criado em 2009, o grupo promove ações de incentivo e de suporte em busca de um mercado mais igualitário.
“Nós estamos sempre procurando soluções de atuação. Entendemos que para trazer equidade as mulheres tem que estar envolvidas em diversas áreas de destaque o que incentiva o ingresso de novos profissionais. Em Março de 2013 realizamos nosso primeiro Encontro Nacional, em março de 2014 realizamos nosso segundo Encontro Nacional a partir daí nos encontramos anualmente para aprofundar nas temáticas sobre o tema, além de participar de vários eventos em todo o Brasil”, relata.
Video games e visibilidade
A área tecnológica também é uma área criativa. É o que defende Michelle Santos que atua como artista conceitual para o desenvolvimento de video games. “Nós estamos vivendo o melhor momento para a produção independente: as ferramentas estão cada dia mais acessíveis e qualquer um que tenha interesse vai encontrar na internet mesmo bibliografia, cursos e comunidades para se profissionalizar. Por isso eu vejo como uma grande oportunidade para mulheres ingressarem nesse segmento, até o fato de ser um ambiente de autodidatismo facilita um pouco para aquelas que não se sentem acolhidas em cursos de tecnologia tradicionais”.
Ela também acredita que através dos jogos é possível perceber uma mudança mais visível: “Hoje vemos jogos com protagonistas femininos muito melhor desenvolvidas e com menos tropes sexistas, pelo menos nos jogos ocidentais. Mulheres estão cada dia mais se envolvendo na produção de jogos e assumindo postos de liderança em equipes criativas”.
Atualmente, Michelle atua em uma equipe horizontal com dois homens e duas mulheres, mas já teve experiências negativas no passado “em ambientes onde se uma mulher bonita não tinha competência para fazer alguma tarefa ou cometia algum deslize, os colegas homens já insinuavam que elas ocupavam seus cargos porque tinham algum relacionamento com o chefe”.
Michelle relata que ver outras mulheres, ouvir suas histórias, foi o que a incentivou a continuar na área: “Posso dizer que muito da atual representatividade feminina, conhecer outras profissionais e outros jogos com personagens femininas fortes me estimulou a continuar na área”. Portanto, ela acha que as mulheres da tecnologia precisam de mais voz, mais exposição: “Eu acho que devemos divulgar mais mulheres na área de tecnologia, contar essas histórias.Representatividade é importante. Eu não conheço nenhum desenho que trate de algum tema parecido (risos). Mas vi muitos livros infantis sobre mulheres historicamente importantes como no Livro das Garotas Audaciosas e em As Cientistas“.
Por fim, para este Dia da Mulher, Pollyana diz o que todas as entrevistadas parecem sentir: que “devemos celebrar com muito fervor as mulheres de tecnologia, pois com certeza são mulheres que lutam contra o preconceito diariamente, que diariamente precisam mostrar que são tão ou mais capazes que os seus companheiros de trabalhos, que nem sempre são reconhecidas, muitas vezes ganham menos por fazerem o mesmo trabalho. Gostaria de deixar um recado para as minhas companheiras de carreira: Acreditem em vocês, não deixem que os obstáculos criados pelo preconceito, desvie vocês de conquistarem os seus sonhos”.